“INFERNINHO” – Faça carinho na vida
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
Historicamente, o circuito exibidor e o mercado audiovisual no Brasil dificultam o acesso do público ao cinema independente, sobretudo aquele fora do eixo Rio-São Paulo. Estas restrições envolvem causas complexas que vêm de longos períodos da história e geram consequências profundas até o presente. Entre elas, os espectadores perdem oportunidades de conhecer a diversidade do cinema brasileiro e a rica produção de outras regiões. Quando chegamos ao Nordeste, a pluralidade se manifesta claramente e o Ceará é um bom exemplo. INFERNINHO traduz tamanha riqueza ao tratar de romance, identidades, sonhos, isolamento, afetos e violência a partir de uma abordagem entre a fantasia, o onírico e o social.
O local onde essas dimensões e questões se revelam é inferninho, o bar administrado por Deusimar. Ela comanda um empreendimento familiar passado de geração a geração como um refúgio para pessoas que nem sempre se sentem à vontade no mundo exterior. Porém, ela quer ir embora para um lugar distante até conhecer Jarbas, um marinheiro que acaba de chegar e quer ficar ali. Um amor começa a nascer entre os dois, capaz de alterar suas vidas, as pessoas ao redor e o próprio bar, além de enfrentar ameaças que invadem o local.
Inferninho é um refúgio para a realidade externa que não é tão convidativa para os frequentadores e funcionários do bar. Todos esses personagens se afastam da heteronormatividade hegemônica ou de um padrão naturalista para demonstrarem certa “excentricidade” ou desvio de imposições sociais. Os clientes sentados à mesa usam máscaras, maquiagens e figurinos incomuns como se estivessem em uma encenação, em um mundo que poderiam ser livres para ser o que preferissem. Já os profissionais do local são Deusimar, uma travesti que abandonou o nome de batismo Denílson, a cantora Luiziane se apresenta com uma riqueza dramática hipnótica graças ao trabalho de Samya de Lavor, o garçom Coelho transita pelo humor nonsense e pela melancolia devido à composição de Rafael Martins e a faxineira Caixa Preta tem uma expressividade misteriosa por conta da atuação silenciosa de Tatiana Amorim. Ao redor de todos eles, há uma atmosfera fantasiosa e onírica criada por um design de produção que enfatiza as luzes neon, a decoração de cores antinaturalistas, as lacunas do espaço e as canções bem ritmadas.
Guto Parente e Pedro Diógenes desenvolvem o universo particular da obra dando elementos adicionais ao que já é observado e sentido à primeira vista. A sensação de fantasia, de sonho também se manifesta pela característica de o bar ser um ambiente onde afetos, amores, carinhos, sentimentos e cumplicidades são estimulados e encorajados com segurança e liberdade. Apesar das brigas provocadas, por exemplo, pelo pagamento correto dos salários, Deusimar, Coelho, Caixa Preta e Luiziane demonstram ternura nos momentos de dificuldade. Eles não hesitam em se preocupar uns com os outros e traduzir fisicamente o carinho que sentem. Acima de tudo, é a relação entre Deusimar e Jarbas que mais se sobressai, favorecida pelos desempenhos de Yuri Yamamoto e Demick Lopes que conferem diferentes pesos dramáticos a este romance. Eles exalam a paixão física dos personagens mesmo quando seus corpos ainda não se tocaram, diferenciam-se pelo contraste entre os desejos de querer fincar raízes e abandonar um aprisionamento espacial e transbordam os receios de serem afastados contra suas vontades.
A direção de Guto Parente e Pedro Diógenes também trabalha as escalas que enquadram aquelas figuras e suas histórias. Embora o bar tenha uma áurea própria importante para a narrativa, os diretores fazem os afetos e os relacionamentos dos personagens ocuparem sempre o primeiro plano. Logo, a decupagem se concentra em planos fechados em torno dos atores, podendo ter closes ou primeiros planos, capazes de tornar as emoções um componente fundamental na construção de um refúgio para esperanças, sonhos e novos projetos de vida. Por outro lado, esta primeira escala de alcance visual mais restrito à perspectiva dos personagens precisa enfrentar uma escala mais ampla e simbólica que entra para desestabilizar o bar. Distintos elementos externos invadem o lugar e se colocam como ameaças ao funcionários e aos clientes: um agente do governo apresenta uma proposta de compra do Inferninho para transformá-lo em um centro de entretenimento virtual, Luiziane chega em certo dia muito machucada por ter sido agredida e dois marinheiros aparecem para cobrar uma dívida de Jarbas.
Não é apenas a diferença entre intimidade e ameaça que surge do embate entre o interior e o exterior do Inferninho. O sonho, a fantasia e a liberdade criativa de quem frequenta ou trabalha no bar se choca com a violência, o cinismo, a desesperança e a ambição da sociedade fora dos limites do local. Nesse sentido, o social aparece caracterizado como o oposto da imaginação e do prazer porque reprime o desejo a partir dos preconceitos e dos egoísmos. Tal oposição faz com que o filme incorpore uma discussão social que, embora esteja distribuída de maneira sutil, pode ser percebida. A concretização dos amores, das ternuras e das afetividades poderia não ter grandes barreiras se não fossem a discriminação das identidades de gênero (a cada comentário maldoso feito para Deusimar e a agressão contra a cantora) e a corrupção em favor de interesses puramente individuais (o desdobramento da oferta de compra e a intimidação dos marinheiros companheiros de Jarbas). Todos os três aspectos contribuíram para a desestabilização do bar e do relacionamento entre Deusimar e Jarbas.
Porém, a narrativa parece relembrar a força da diversidade do cinema brasileiro e a capacidade de reinvenção pela fantasia afetuosa. Guto Parente e Pedro Diógenes trabalham o fantástico como ainda não haviam feito em suas carreiras, sobretudo se forem lembrados seus trabalhos anteriores, como “Clube dos canibais” e “A filha do palhaço“. Em primeiro lugar, uma decisão extrema que Deusimar poderia tomar é interrompida pelo monólogo amoroso do Coelho no qual a frase “Faça carinho na vida, não a maltrate” se torna um símbolo do arco da protagonista e da trama como um todo. A partir daí, Deusimar pode dar outro sentido para os eventos que haviam ocorrido em suas vidas e para seu sonho de não permanecer no bar como uma obrigação de herança familiar. Este é o momento em que os dois diretores enfatizam ainda mais a presença da fantasia e experimentam visualmente a possibilidade de projetar seus desejos para além das limitações colocadas pelo espaço concreto e pela racionalidade. Entrar nessa ambientação é o que permite à personagem se reencontrar com si mesma e com tudo ao seu redor.
Após um breve tempo longe do bar, física ou emocionalmente, retornar ao local promove mudanças sensoriais significativas para a protagonista e espectadores. Tudo pode estar como era antes, mas, ao mesmo tempo, a sensação é a de que um novo espaço foi criado ali. Enquanto os funcionários, os clientes, a música e as características espaciais mantêm a mesma aparência, a presença de Deusimar foi ressignificada. Um ciclo é reiniciado e o fantástico disponibiliza outras chances para que os romances continuem, as relações permaneçam, o refúgio se preserve e a liberdade se defenda de eventuais riscos. “Inferninho” encontra, por fim, na canção interpretada por Luiziane um fechamento simbólico expressivo para a trajetória de Deusimar, Jarbas, Coelho, Caixa-Preta e da própria cantora. São os afetos que produzem seus próprios retornos para fazer carinho na vida, seja ele fantasioso, seja ele cotidiano.
Um resultado de todos os filmes que já viu.