“RUBY MARINHO, MONSTRO ADOLESCENTE” – Estabelecer um universo sólido (ainda que no mar)
Misturando “Red: crescer é uma fera” com “A pequena sereia” (de 1989), a DreamWorks apresenta ao público RUBY MARINHO, MONSTRO ADOLESCENTE, um filme sem muita criatividade nem carisma. Falta-lhe a inspiração que resultou em joias da animação como como “Shrek”, “Kung Fu Panda” e “Como treinar o seu dragão”. Com pequenos ajustes, o filme já seria bem melhor, porém sua falha insuperável está na má construção de universo.
Ruby Marinho está animada para participar do baile da escola, que será em um navio, mas ouve um “não” de sua mãe, com a justificativa de que o oceano é perigoso. Decidida a desobedecê-la, Ruby acaba caindo na água antes de convidar seu interesse romântico, o que faz com que ela descubra que é uma Kraken Gigante destinada a proteger o mar das perigosas sereias.
O maior equívoco do longa é a falta de solidez em sua construção de universo. Certamente o problema não está na identidade visual, uma vez que os diretores Kirk DeMicco e Faryn Pearl mantêm perfeitamente a proposta da DreamWorks enquanto estúdio de animação. Ainda que nem todas as produções usem a mesma técnica – basta ver o stop motion de “A fuga das galinhas” e a computadorização estilizada de Zack Snyder em “A lenda dos guardiões”, dentre outros -, os “carros-chefes”, que conseguiram iniciar franquias (os três mencionados), têm um visual muito assemelhado, que é repetido aqui. A animação é cartunesca e emborrachada, sem dispensar, todavia, detalhes que conseguem tornar as personagens únicas (no caso aqui tratado, são exemplos as olheiras das avós, os dentes de ouro de Gordon e as sardas da protagonista). O design de produção é bastante simbólico no uso das cores, usando o amarelo na avó por ser uma rainha e variando os tons de Ruby (azul no começo, pois sua relação com o mar ainda será desenvolvida; roxa e lilás quando transformada, a depender de seu ânimo mais ou menos exaltado; e rosa quando brilha diante da alegria do fundo do mar).
O visual é, portanto, tecnicamente acertado, e Ruby é uma heroína simpática. Porém, ela é frágil demais, quase como uma repetição do Soluço de “Como treinar o seu dragão”, mas sem o carisma de Banguela ao seu lado (talvez seu animal de estimação pudesse ter ajudado). Como se não bastasse, DeMicco e Pearl não conseguem dar unidade ao longa, como no emprego da quebra da quarta parede nos minutos iniciais, o que é completamente abandonado depois.
Além disso, a sutileza praticamente inexiste: Ruby vive uma fase em que a vida social é fundamental, os celulares ditam o ritmo do convívio e – nas palavras de seu pai – está com o corpo “passando por mudanças” e “florescendo”. A metáfora para a puberdade não poderia ser mais clara, mas sem a unidade temática de “Red”: enquanto a animação da Pixar escolhe o seu tema e o desenvolve, o roteiro de DeMicco, Pam Brady, Eliott DiGuiseppi e Brian C. Brown se transforma de um coming of age para um conto sobre sororidade. Nesse caso, o erro passa a ser outro, com o maniqueísmo de uma vilã que jamais funciona (menos ainda com a péssima dublagem de Giovanna Lancellotti, cuja voz doce e monotônica esvazia ainda mais a personagem). A falta de sutileza se repete no humor, exclusivamente voltado ao público infantil. No máximo a piada sobre o Canadá pode fazer os adultos em geral entenderem algo que extrapola os pequenos; no mais, o tio de Ruby é o tipo de personagem de animações que reforça o estereótipo de serem elas dirigidas apenas às crianças. Estereótipos, inclusive, não faltam: desconsiderando a protagonista e sua mãe, as personagens são todas clichês.
Essa conclusão reafirmaria a mensagem de sororidade, porém torna oca a resumida construção de universo. Não se pode dizer que um universo seja construído, mas é decepcionante como a trilha sonora. Nesta, falta coesão (dificilmente a marcante “Ride like the wind”, de Christopher Cross, consegue dialogar bem com “This moment”, de Mimi Webb, cujo perfil alegre é típico das animações); naquele, falta explicação. É surpreendente como o filme acaba sem jamais explicar a razão da maldade das sereias para além do ego e do poder. Se é verdade que isso pode servir de explicação, não é menos verdade que é uma explicação simplista e unidimensional.
“Ruby Marinho, monstro adolescente” se resume na metáfora da puberdade feminina, flerta com um discurso sobre sororidade e tem uma protagonista que quer se aventurar tal qual Ariel, de “A pequena sereia” (1989). A diferença, contudo, é gigantesca. Ariel quer sair do mar porque é fascinada por um mundo que desconhece. Ruby quer entrar no mar porque é uma kraken gigante e krakens gigantes devem proteger o mar das sereias. A dúvida que o filme não responde é: que mal as sereias podem fazer? Se é um mal contra krakens, o que a mãe e a avó de Ruby querem é a autopreservação, contradizendo o discurso inicial de defesa do oceano. Se é um mal contra o mar, há uma lacuna gigantesca porque isso simplesmente não aparece no filme. Em qualquer dos casos, o que a produção não faz é estabelecer solidamente seu universo, erro que nenhuma das outras animações citadas comete.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.