“HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO” – Multiverso de estímulos
O conceito de multiverso não é recente na cultura pop. “Fringe“, “Rick and Morty“, “Donnie Darko“, “De volta para o futuro” e “A outra Terra” são algumas produções que imaginam a existência de múltiplas realidades. Nos últimos anos, a frequência de obras sobre o tema pode ter aumentado, especialmente com “Homem-Aranha: sem volta para casa“, “Doutor Estranho no multiverso da loucura” e “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo“. Em seus lançamentos, os três títulos foram criticados por não explorarem a diversidade de possibilidades visuais. Esta crítica é mais difícil de ser feita em relação a HOMEM-ARANHA: ATRAVÉS DO ARANHAVERSO, decidido a estimular diferentes sensações no público.
A continuação de “Homem-Aranha no Aranhaverso” leva Miles Morales a outra aventura pelo multiverso. O jovem tem ao seu lado Gwen Stacy e uma nova equipe de várias versões de Homem-Aranha, reunidos em uma missão para proteger todas as dimensões. A maior ameaça é o Mancha, um vilão poderoso que busca se afirmar como um ser mais importante do que julgam e se vingar do protagonista. Além de enfrentar o antagonista, os heróis são desafiados a sacrificar o que mais amam e acreditam em nome de um senso de heroísmo.
Quando se pensa em uma história de super herói, o primeiro estímulo que se poderia supor que seria construído é a adrenalina das sequências de ação. Embora existam cenas assim nos minutos iniciais, os diretores Joaquim dos Santos, Kemp Powers e Justin Thompson optam pelo envolvimento emocional com os personagens. Ao longo de um tempo considerável, o trio divide o protagonismo entre Miles e Gwen ao direcionar a câmera para as relações familiares de ambos. Nos dois casos, os jovens precisam ocultar sua identidade secreta e lidar com conflitos paternos que se originam na disposição de pais policiais de interferir nas vidas dos filhos. Após a aventura anterior, a narrativa faz questão de apresentar o estágio de evolução dramática dos arcos de Miles e Gwen. Começar dessa maneira prepara o terreno para o clímax emocional de um dilema que atinge personagens e espectadores em toda sua complexidade.
De modo semelhante ao primeiro filme, a animação se sobressai com estímulos sensoriais advindos das escolhas estéticas. A inventividade visual dos cineastas se revela na criação de momentos particulares que se baseiam em técnicas diversas de animação, indo desde uma composição próxima de pinturas de óleo, passando pelo stop motion de peças de lego, por computação gráfica em 3D e chegando ao estilo de pop art. A criatividade se acentua quando tais técnicas são sobrepostas por efeitos de montagem, que fazem elementos distintos serem encadeados em ritmo acelerado, ou pela organização dentro do mesmo plano, que combinam a estética de uma revista em quadrinhos com outras propostas gráficas no centro da imagem. Como resultado, o público é estimulado a apreciar a abordagem artística em geral, se ver deslumbrado pela riqueza de tons, cores e traços e sentir a vibração de um fluxo constante de acontecimentos em sintonia com a energia da juventude.
Há também uma harmonia muito grande entre a abordagem estética de uma animação que se molda através de técnicas diversas e o princípio que norteia as sequências de ação. A intensidade desses momentos vem da magnitude dos confrontos, das perseguições e do uso de poderes especiais que sempre mantém uma velocidade crescente. Além disso, o conceito de multiverso atinge as dimensões de espaço e tempo, flexibilizando a composição dos cenários e o ritmo dos eventos. Sendo assim, o que acontece em um universo reverbera nos outros, determinadas passagens se aceleram em uma frequência intensa ou se retardam um pouco mais em um slow motion plástico e o espaço se dobra em uma textura fluida com traços maleáveis ou abstratos. É verdade que algumas cenas podem preencher o quadro com tantos estímulos visuais diferentes que se torna difícil identificar e acompanhar todos eles, porém seus impactos sensoriais se fazem presentes ainda que não sejam racionalmente assimilados.
Os três diretores igualmente experimentam outros tipos de entrelaçamento de universos que extrapolam sua própria diegese. Diferentemente das muletas produzidas pela Marvel Studios, que dependem cada vez mais de easter eggs, de referências cruzadas entre os filmes e de expectativas do que ainda está por vir (e nunca chega efetivamente), a animação estabelece de forma admirável um mundo em expansão e sempre coeso. Em perspectiva, o centro dramático do conflito é a preservação de múltiplas dimensões conectadas sob o risco de desestabilizar a existência e as várias versões de Homem-Aranha. Logo, não se torna gratuita a inclusão de cenas que remetem a filmes anteriores live action do aracnídeo, como o beijo em Mary Jane na chuva filmado por Sam Raimi e a queda mortal de Gwen Stacy filmada por Marc Webb. À medida que a narrativa avança, o universo continua se expandindo e incorpora citações a outras obras, como um cartaz que evoca “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo“, cenas de Tobey Maguire e Andrew Garfield como intérpretes do herói e inclusive um meme famoso na internet de vários Homem-Aranha confusos apontando um para o outro.
As características do multiverso acompanham a diversidade visual, a experimentação das sequências de ação e a ligação com outras histórias do herói nos gêneros cinematográficos trabalhados. A produção se apoia em um humor que aproveita o contato entre elementos variados de universos diferentes, como as aparições de muitas versões criativas de Homem-Aranha, a vida oculta de Miles e Gwen escondida de todas as formas possíveis de suas famílias e os aspectos tecnológicos da vida moderna, como a cena em que Miles troca mensagens com seu pai por telefone enquanto persegue o Mancha. Tempos depois o humor abre espaço para a construção de um drama que se desenvolve através de conflitos complexos e de evolução sofisticada dos personagens. Os planos do vilão despertam discussões interessantes sobre a solidão de pessoas em um universo mesmo que estejam interligadas com outras versões suas, dilemas em torno da luta por sua vida pessoal ou pela preservação do multiverso e reflexões sobre livre arbítrio dentro de visões a respeito do cumprimento de destinos já traçados.
Diante de tantos estímulos que compõe seu multiverso, “Homem-Aranha: através do Aranhaverso” faz forma e conteúdo escalonarem de formas complementares. A dramaturgia e a unidade estilística ganham o mesmo peso, nenhum se sobrepõe e ofusca o outro, pois ambos produzem um mundo diegético que fascina o olhar, atinge as emoções dos espectadores e redimensiona os personagens. A narrativa evolui articulando composições gráficas diversas, conferindo um senso de liberdade criativa contagiante e aumentando o peso dramático das novas relações e situações em que Miles, Gwen, suas famílias, Mancha e os outros Homem-Aranha são colocados. A intensidade chega a níveis tão libertadores e experimentais que o filme se permite ser uma história em quadrinhos em seu desfecho, porque propõe um último estímulo que deixa tudo e todos impelidos a querer voltar logo para este universo de sensações.
Um resultado de todos os filmes que já viu.