“HISTÓRIA DE TAIPEI” – Pertencimento maleável
* Filme assistido na plataforma da Filmicca.
São muitas as formas de se analisar a construção dos códigos cinematográficos. Do surgimento da Sétima Arte à compreensão cada vez mais elaborada das maneiras de se utilizar a imagem, múltiplas formas de se organizar as impressões da variação de planos se desenvolveram. Consonante com outros movimentos artísticos, é interessante pensar no surgimento de práticas que investem na negação de outros formatos convencionalizados pelo tempo. Se o desenvolvimento de narrativas sólidas e visualmente higienizadas assumiu uma grande escala dentro do sistema industrial, é interessante observar obras como HISTÓRIA DE TAIPEI priorizando uma outra forma de se conectar com o espectador.
Aprisionados entre avanços e retrocessos, Lung e Chin vivem uma vida conturbada em meio às transformações de Taiwan. O primeiro se envolve com esquemas escusos pelos quais tenta recuperar uma glória passada que jamais irá revisitar. A última prospera como funcionária de uma empresa de imóveis, atravessando um afastamento rompante com relação ao amante e ex-jogador de Baseball. Conforme as distâncias aumentam e antigas questões retornam, eles passam a repensar todas as suas relações de vida.
Dirigido por Edward Yang, o filme se encaixa na esfera reconhecida como “Cinema de Fluxo”. Normalmente, esse campo não tem interesse pelo desenrolar de tramas com blocos bem definidos, priorizando a construção sensorial que permeia os cosmos de suas personagens. Ele assume uma curiosidade muito maior pela órbita alimentada pelo estado emocional das figuras ali presentes, se distanciando de uma modelagem mais tradicional de personalidades e arcos.
Isso não determina que o filme aqui em discussão seja desprovido de um elo narrativo e presenças bem definidas, diferente de outras modalidades do gênero que investem em aspectos ainda mais experimentais. Todavia, não é difícil perceber esse outro olhar para com a imagem em movimento na direção executada por Yang.
Munido de uma montagem pouco acelerada, ele investe em planos longos e estáticos, que filtram os estímulos mais diretos e obrigam quem os testemunha a encontrar outra conexão com a imagem. Mais do que emular o senso de aprisionamento compartilhado pelos membros do casal, ele presenteia a plateia com a oportunidade de ler aquelas imagens à sua própria maneira.
Não que o diretor ambicione que sejam encontradas resoluções racionais para cada um de seus fotogramas. Muito pelo contrário: ele viabiliza assim uma decifração mais inconsciente das imagens que compõe.
Se na história da fotografia as luzes deveriam ordenar às informações visuais, aqui elas se misturam à atmosfera soturna que é absorvida pelas pessoas em deslocamento. O senso de perdição causado por uma modernização impiedosa converge com as luzes das avenidas, que ofuscam os rostos observados através dos carros envidraçados. O neon piscante dos outdoors determina a artificialidade da modernidade, e os cômodos vazios determinam a dualidade entre as expectativas de preenchimento e uma realidade opaca.
Não que esses aspectos atentem para uma obra puramente estética. Escrito pelo igualmente diretor igualmente influente, Hou Hsiao-Hsien – e aqui não por acaso o ínterprete do próprio Lung -, o filme traz uma harmonia entre roteiro e direção que bem incorpora os dilemas socioculturais por detrás do todo. A falta de pertencimento se transmuta nos planos longos de automóveis em movimento, dos borrões que se intrometem no primeiro plano, e na própria estruturação da ordem de enquadramentos que separa as figuras em narrativas quase paralelas. E no campo dos atores, os encontros e desencontros impulsionam a organicidade de um amor complexo, fragmentado em meio à explosão comercial do espaço urbano em que está condenado a tentar sobreviver.
É como se a denúncia indireta dos efeitos da globalização emergesse de uma analogia bastante semelhante ao próprio cinema, que na modalidade do fluxo – especializado na desconstrução de padrões visuais e de lógicas cristalizadas de unificação de cenas – se desvencilha da imagem em uma condição mais plastificada. Tem-se então, nesse olhar para o passado artístico com o intuito de ressignificá-lo, uma abertura para obras tão abrangentes quanto simples em execução.
Sendo assim, “História de Taipei” é uma excelente demonstração que as modalidades do Cinema de Fluxo podem assumir. Levando o comentário social para o campo da abstração, o filme reconhece o seu papel como construtor de imagens – e não como um emulador pleno da realidade -, mas o faz pela desconstrução das cristalizações mais plásticas do cinema. Surge assim uma obra de intensa confluência entre autor e espectador, que apesar de encontrar alguma barreira em conexão, pode escolher se debruçar sobre o longa de modo ainda mais espiritual.