“O HOMEM CORDIAL” – Um filme cordial
Sérgio Buarque de Holanda foi assombrado pela expressão “homem cordial” criada por ele. Da forma como foi proposta, abriu brechas para ser entendida como uma categoria que indicaria que o brasileiro sempre seria movido pela bondade e pela amabilidade. O sociólogo precisou reafirmar que, na realidade, o conceito consistiria na ideia de que o brasileiro agiria muito mais pela emoção, positiva ou negativa, do que pela razão. É inevitável trazer à baila essa discussão quando se pensa no filme O HOMEM CORDIAL, suspense que poderia ser uma ironia em relação ao primeiro sentido dado à cordialidade, mas que se torna uma narrativa guiada pelas emoções de um ponto de vista problemático para a trama.
Quem assume o protagonismo é Aurélio Sá, o vocalista de uma banda punk rock perseguido por ter supostamente se envolvido na morte de um policial. Mesmo ameaçado, ele insiste não ter qualquer envolvimento no ocorrido. No dia em que precisa fugir de manifestantes raivosos que protestavam em frente à sua casa, o cantor conhece a jornalista Helena. Ela quer ouvir a versão do artista para os fatos e sua ajuda para encontrar Matheus, um menino de onze anos acusado de roubo na ocasião da morte do policial e desaparecido desde então.
O diretor Iberê Carvalho faz um retrato contemporâneo da sociedade brasileira através dos temas trabalhados, com profundidade ou não. A prática do cancelamento na internet, as gravações recorrentes nas ruas por algum transeunte munido de seu celular, o justiçamento público mediante uma violência típica do matar ou morrer, o racismo estrutural e a violência policial são aqueles que mais se destacam. Além da sequência inicial que encena parte do incidente incitante da história a partir do formato vertical de uma câmera de celular, o primeiro ato segue Aurélio diretamente e perpassa pelas questões relativas ao uso nocivo das tecnologias digitais no presente e à brutalidade da resolução de conflitos através da força física. Logo, não há ironia possível no emprego da palavra cordial no título, uma vez que, desde o princípio, as emoções expostas são a irritação, a aversão, a indignação e o ódio. E em termos de construção sensorial, a narrativa se configura como um suspense que ameaça o protagonista.
Aurélio se sente ameaçado por todos os cenários por onde passa: o palco durante um show, onde é ofendido com objetos arremessados nele; o restaurante, onde é convidado a se retirar para não manchar a imagem do local; o hospital para onde leva um amigo infartado e recebe olhares intimidadores; e as ruas de São Paulo, onde é confrontado brutalmente por desconhecidos. Em comum, todas as situações são simbolizadas por acusações incoerentes nas redes sociais (#AurelioAssassino) ou dizeres extremistas (“Aurélio defende bandido!” ou “Vai para Cuba!”), que retratam setores sociais autoritários do Brasil atual. A tensão que rodeia o personagem é evocada através de detalhes no extracampo que se direcionam, de alguma maneira, ao artista, seja um telefone apontado para ele ou um potencial agressor nas redondezas. No entanto, Iberê Carvalho segue alguns clichês visuais que contribuem pouco para a dinâmica estética de um cinema urbano e noturno e, por vezes, até dificultam o senso de perigo urgente. São os casos, por exemplo, dos planos fechados em torno dos personagens e a baixa profundidade de campo que não conferem a urgência pretendida e enfraquece as ameaças de uma cidade grande à noite.
No segundo ato, fica evidente que o filme incorporou o sentido de cordialidade como intensificação de emoções acima do pensamento racional. Se o suspense havia se iniciado em torno das consequências que poderiam ocorrer com Aurélio por conta das acusações de que teria responsabilidade na morte de um policial, ele se transforma para uma investigação acerca do paradeiro de Matheus e da inocência do menino. A partir desse momento, a obra desenvolve outras temáticas caras ao Brasil contemporâneo, como o jornalismo independente, a violência severa contra a população negra, a truculência policial sob um recorte racial e a marginalização de classes sociais subalternizadas. O artista ainda é o fio condutor do desenvolvimento da trama porque é seu olhar que apresenta tudo ao público, porém, o que realmente move os acontecimentos diz respeito não a um homem branco, mas uma família negra. Nesse aspecto, retirar o protagonismo a quem, de fato, pertence a história é um problema delicado, especialmente quando a branquitude ocupa o lugar que deveria ser, por direito, da negritude.
Consequentemente, o papel desempenhado por cada personagem e as possibilidades de seus intérpretes esbarram na escolha problemática da perspectiva principal da produção. Paulo Miklos tem uma energia que se adequa muito bem ao cinema de ação ou de suspense, como já se pode observar em “O invasor“, algo que aparece no primeiro ato quando ele precisa responder ao cancelamento social e às intimidações que sofre. Contudo, como esta não é a história de Aurélio, o personagem é colocado em um lugar menos relevante à medida que o tempo passa e o ator se esvazia dramaturgicamente. Paralelamente, os demais personagens não tem tanta oportunidade de tomarem para si as rédeas do filme, pois a temática racial é comentada sem uma profundidade marcante. Assim, Béstia, interpretado por Thaíde, limita-se a contestar Aurélio apenas em uma cena sobre os riscos cotidianos de uma pessoa negra ao andar pela rua; Helena, vivida por Dandara Morais, afirma rapidamente que a história é sobre Matheus e não Aurélio; e Marina, interpretada por Roberta Estrela D’Alva, expõe pontualmente os medos que atravessam a população negra na luta por justiça.
Ao mesmo tempo que os personagens negros são colocados como coadjuvantes em acontecimentos que dizem respeito às suas vivências, algumas sequências expressivas não atingem a potência dramatúrgica e visual que poderiam. São passagens que reorientam levemente o olhar da narrativa, mas não a ponto de transformar plenamente a perspectiva dos eventos. A ida ao bar de Béstia não aproveita a cenografia do local, marcada por cartazes de figuras como o humorista Antônio Carlos Bernardes Gomes e a ativista Angela Davis, nem o confronto de rimas no palco a partir da performance de uma jovem artista. A busca por suspeitos do desaparecimento de Matheus desemboca em um problemático momento de quase linchamento que poderia ser um paralelo com as agressões da primeira cena. E a passagem por uma comunidade escancara na voz da mãe de Matheus o problema de colocar um homem branco como protagonista. Além disso, o esforço para dar tensão ao terceiro ato se concretiza mais pela situação em si envolvendo a violência policial do que o uso pasteurizado da câmera da mão em movimentos frenéticos.
Embora haja sequências que possam desencadear sensações revoltantes de tensão e indignação no espectador – a chegada da polícia no terceiro ato e a encenação completa da situação que fez Aurélio ser cancelado e Matheus precisar fugir -, o resultado geral faz “O homem cordial” se tornar um filme cordial. Não no sentido de representar erroneamente o brasileiro na chave da bondade total ou de ironizar o estereótipo do brasileiro afável e acolhedor em tempos de extremismo violento da classe média e da classe mais alta. Inclusive, “O animal cordial” consegue trabalhar de forma mais instigante a violência crescente do cidadão médio decorrente de suas frustrações cotidianas. A cordialidade da obra está no fato de ser movida por fortes emoções repletas de boas intenções que obscurecem uma leitura mais comedida e racional das escolhas feitas. Então, a sequência final em um programa televisivo simboliza não a crítica que se pretendia sobre o esquecimento precoce dos reais problemas da sociedade pela grande mídia ou por parte do país, mas o retorno ao problema de um filme que conta sua história a partir do olhar de quem não sente totalmente o peso de sua carga dolorosa e violenta.
Um resultado de todos os filmes que já viu.