“A CIDADE DOS ABISMOS” – A experimentação que liberta
Por mais que muitos insistam em não perceber, a experimentação linguística é um dos cernes do Cinema Brasileiro. Da dilatação espacial proposta pelo Limite (1930) de Mário Peixoto, ao escárnio da explosão imagética que constituiu o Cinema Marginal, o rompimento com a narrativa clássica sempre encontrou espaço para tratar desse país de Terceiro Mundo. E chega a vez de A CIDADE DOS ABISMOS reafirmar esse caráter múltiplo na discussão de questões sociais.
O acaso de uma misteriosa véspera de Natal reúne quatro desconhecidos: os subjugados Glória, Maya, Kakule e Bia. Encontros e desencontros levam ao assassinato de Maya, obrigando os demais a mergulhar em uma súbita investigação.
Dirigido pela dupla Priscila Bettin e Renato Coelho, autores que já exploraram alguns aspectos da vídeo-arte, chama a atenção como o longa explora a dissociação para com a racionalidade. Esse eixo concede muito liberdade ao projeto, que se transmuta a cada passagem. Não são poucas as mudanças de estilo imagético, a experimentação sonora abrupta e as construções veiculadas ao lúdico que a obra adota.
Isso fragmenta não apenas a absorção pelo espectador, emparelhado ao elenco pela mesma incapacidade de antecipar os acontecimentos que se desenrolam, como também remete à dimensão periférica em que as figuras habitam. Ao tornar a falta de unidade o seu senso íntimo de coesão, o filme abstrai a fragilidade das conexões nutridas por seus protagonistas, perseguidos toda a vida por questões de identidade e ausência de pertencimento.
Isso bem se manifesta na construção de Verónica Valentinno, que faz da sua Glória uma mulher em busca da emancipação do próprio corpo. Ao lado de um estrangeiro africano e outras figuras historicamente periferizadas, ela em muito conversa com a estrutura amorfa do projeto. A direção encontra a sua forma de narrar em uma homenagem à essa margem, tão múltipla quanto o é excluída.
São fatores como esse, ainda presente em figuras como a do estrangeiro africano, papel do brilhante Guylain Mukendi, que justificam a variabilidade de granulações, que varia entre a Super 8 e a câmera digital, e a essência marcada pelo atravessamento do real graças ao onírico, que intensifica fontes de luz e o tempo todo atenta para o além da tela.
Tem-se um exercício mutante de completa transformação, que resgata assim essa tradição periférica de um cinema subdesenvolvido e que encontrou nessa ausência a sua maior riqueza. Nem por isso, todavia, a forma inibe a elaboração do drama.
Isso porque o filme ainda se atenta bastante ao desenvolvimento das personagens e seus respectivos arcos de transformação. Ainda que abandone esqueletos convencionais de progressão, a cadência das situação, que deslizam do teatral assumido e a dramaturgia cinematográfica, e a confluência das mesmas com o conflito interno de cada figura encontra o seu grau mais palatável.
Em outros termos, o filme não se deixa levar pelo amor à própria forma e abdica de traços de compreensão, alavancando ainda um espaço dentro dos tramas de fácil dispersão para talvez, em um interesse não racionalizado, atualizar legados antigos para um grande público da atualidade.
Desse modo, “A cidade dos abismos” navega por esse interstício entre a margem e a luz por meio da pluralidade. A escolha de diferentes linguagens pode até pender ao exagero em alguns sentidos, mas é o reconhecimento do grau de humanização que mantém o seu funcionamento. Essa junção é o que torna o filme uma ode ao periférico e a beleza inerente a ele.