“A GAROTA RADIANTE” – a dicotomia entre a vida e a arte
É inquestionável que momentos sombrios da história humana deixaram um passado insuperável. Reflexos de um grande abismo existente em nossa natureza, eles nos permitem divagar sobre as relações humanas, mesmo incapazes de oferecer respostas concretas. Essa suspensão última permite uma intersecção entre o cotidiano e o fazer artístico, hábil na construção de contos sobre a moralidade. É o caso do agridoce A GAROTA RADIANTE, que contrapõe a inocência de sua protagonista com a brutalidade do Holocausto.
Dedicada a se tornar uma grande atriz, a doce Irene passa os seus dias descobrindo pequenos prazeres da vida. Em meio à ocupação nazista, na França, entretendo, ela se vê obrigada a dividir as suas experiências com o medo de pertencer a uma família judia.
Dirigido pela estreante Sandrine Kiberlain, o longa chama a atenção pela forma como se divide na construção de sua protagonista. Essa dualidade se instaura desde o primeiro plano, em que a carismática Rebecca Marder ensaia com um colega para uma apresentação. O close sem falas nos observa de volta, jogando o dilema para o além da tela: quem somos, e o que nos torna reais?
Esse senso de perdição entre o real e o fictício se mantém durante toda a primeira sequência, que atrasa a revelação de estarmos vendo encenações. Isso anuncia a intenção da obra de reconhecer a sua protagonista como uma mera personagem, ainda que a mesma ganhe uma complexidade crescente.
É como se a produção investisse admitisse a própria incapacidade de fazer jus à densidade total da época. Isso permite um flerte com uma realidade inocente apesar do conflito externo rompante, que engrandece o filme especialmente nos encontros entre a tragédia e a juvenilidade de Irene.
Apesar desse teor inocente que perdura durante boa parte da duração, seria injusto afirmar que o recurso minimiza o impacto negativo da situação real. Mesmo que perpetuado de uma forma predominantemente interna, não é fácil acompanhar a mitigação dos elementos de expressão que contextualizam a vida daquela família.
Dos candelabros típicos cujas velas se extinguem ao instrumento tocado pelo irmão, são bem mapeados os signos e as transformações em si que indicam o desaparecimento de seus traços definidores. A incapacidade de praticar o judaísmo se materializa mais que a ameaça física em si, reforçando o trafegar da direção por essa via dupla entre o que nos define interna e externamente.
Tal aspecto é igualmente bem explorando no desenvolvimento da percepção de Irene em relação ao desenrolar em torno de si. Em um mecanismo quase recíproco, se a dor da realidade passa a moldar seu comportamento, o impedimento de seguir seu sonho profissional alimenta a sua necessidade de fugir para o campo lúdico.
Nesse sentido, Irene acaba sendo equilibrada ao longo do filme, preservando uma inocência de se refugiar em um exercício imaginário, mas tentando se preparar para a dureza do novo contexto em que se encontra.
Sendo assim, “A garota radiante” se coloca como um filme histórico que discute, para além das claras temáticas políticas e sociais, a beleza dessa confusão entre o interno e o performático. É uma obra que entende a importância de estabelecer, mais do que a complexidade única de sua personagem, a sua presença como um símbolo universal. É essa noção que permite a tocante ressignificação de insígnias que, se promulgadas como mecanismo de redução, acabaram se tornando um manifesto de resiliência.