“PÂNICO” (2022) – O “horror elevado” olha o slasher
Em 2017, o artigo “How post-horror movies are taking over cinema” escrito por Steve Rose para o The Guardian cunhou o termo “pós-horror” e iniciou uma polêmica. Filmes como “Ao cair da noite“, “A bruxa” e “Hereditário” estariam ultrapassando as convenções do terror para se tornarem algo mais complexo temática e emocionalmente? Debates se seguiram e muitos críticos firmaram a posição de que o terror com jump scares não seria necessariamente inferior e o gênero já teria abordado críticas sociais ou já carregaria uma roupagem dramática desde o início da história do cinema. Com o tempo, a controvérsia se enfraqueceu. E em 2022, o quinto volume da franquia PÂNICO levou a questão para outro rumo.
Vinte e cinco anos após uma série de assassinatos na cidade de Woodsboro, um novo serial killer se apropria da máscara de Ghostface. A partir daí, outra onda de crimes brutais se inicia tendo como alvo o grupo de amigos de Tara. Após o primeiro ataque, a irmã de Tara, Sam retorna à cidade e com ela figuras e segredos do passado também reaparecem. Se os quatro filmes anteriores contaram com a dupla Wes Craven e Kevin Williamson, o último lançamento coube a Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett.
A dupla de diretores e roteiristas se declarou fã da franquia e interessada em revisitar o original fazendo adaptações para a conjuntura atual. Porém, o processo parece ser guiado por um olhar típico do que seria o “horror elevado” para o slasher dos anos 1990. Como consequência, três aspectos essenciais de “Pânico” são desmontados sem que seja proposta uma nova abordagem: os ataques de Ghostface, as referências metalinguísticas e o mistério em torno da identidade do assassino. Em tese, o primeiro elemento poderia soar bem articulado observando rapidamente a sequência de abertura que remete à morte da personagem interpretada por Drew Barrymore no primeiro filme. As citações extradiegéticas sobre o presente estão lá (menções ao “pós-horror”, o identificador de chamadas, o aplicativo de mensagens no celular, o sistema de segurança para casa acionado pelo celular…). O que não está ali é a construção de tensão que funcione sem depender das lembranças da obra de 1996.
No decorrer da narrativa, as demais cenas de assassinatos não conseguem driblar a mediocridade criativa. Na verdade, os momentos que não são medíocres se tornam pobres em termos temáticos ou estilísticos. Em certa passagem, Ghostface menciona explicitamente “Psicose“, dando a entender que sua vítima poderia ser assassinada de modo similar a Marion Crane. Na prática, nem a encenação do assassinato nem a manipulação da tensão até a irrupção da violência evocam em algum nível o filme de Hitchcock. As sensações deixadas são de que Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett fazem uma alusão pseudointelectual ou uma homenagem fria a um clássico, que não é devidamente reverenciado por eles. No terceiro ato, outro ataque ocorre e lembra apenas superficialmente o uso criativo da exibição de “Halloween” em uma TV no primeiro “Pânico“, pois o efeito parece acidental. O exercício de metalinguagem com o poder da imagem cinematográfica surge por poucos segundos como se os cineastas não notassem seu potencial.
Outro aspecto vital para a franquia é a autoconsciência em relação ao gênero e ao próprio universo diegético. Wes Craven e Kevin Williamson faziam isso de forma cômica sem levar a sério os clichês enquanto os utilizava. Já a nova dupla não compreende o humor existente no recurso, afinal os comentários sobre horror ou cinema feitos por Richie pretendiam ser engraçados e não ironicamente críticos como se tornam. Já a leitura das regras do gênero e de uma franquia longa é vazia e sem maior criatividade visual, como se pode observar na sequência em que os personagens discutem a questão de produzir uma obra artística que reverencie o original e transforme alguns elementos sem desagradar os fãs mais ardorosos. Na concretização da narrativa, os dois diretores assumem uma postura arrogante de emular o original como se pudessem superá-lo. Consequentemente, as referências metalinguísticas e a revelação de segredos familiares do passado são feitas como se fossem obrigações a serem cumpridas sem reconhecer a importância desses aspectos.
Se o quinto volume aparentemente emula a primeira parte da franquia, as escolhas formais revelam o interesse pela desconstrução em si mesma como puro capricho dos realizadores. A carga emocional das cenas de ataque é enfraquecida, as citações metalinguísticas não passam de artifícios isolados do fluxo da narrativa e as explicações nada sutis sobre o que é o filme não o fazem ganhar a inteligência ou a alma que não possui. Concomitantemente, a emulação que descontrói prejudica os paralelismos que os cineastas tentam fazer resgatando características, ideias e acontecimentos do original sob uma roupagem semelhante sem ser idêntica. O elemento mais afetado é a criação do mistério em relação à identidade do assassino. Anteriormente, Wes Craven e Kevin Williamson lançavam pistas evidentes sobre quem seria o serial killer como mais um mecanismo de produção de humor, mas ainda conservando o enigma a ser resolvido. Agora, Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett evidencia quem seria o Ghostface com indícios diretos que ridicularizam a percepção de um mistério a ser decifrado.
Quando os dois diretores deixam a emulação em segundo plano e assumem a homenagem à franquia, o resultado não é tão diferente. A abordagem deles de referenciar os filmes anteriores, especialmente o primeiro, até se coaduna com o universo diegético de revisita ao passado na forma de eventos marcantes e personagens icônicos. Sidney Prescott, Gale Weathers e Dwight Riley são as figuras recorrentes em “Pânico” e fontes preferenciais de reverência dos realizadores. Embora a intenção declarada seja homenagear o que veio anteriormente, a narrativa desvaloriza Sidney, Gale e Dwight deixando-os com pouco tempo de tela, deslocados da unidade geral da obra ou inferiorizados em relação ao restante do elenco. Nas ocasiões em que algum desses personagens ou mais de um deles está em cena, a narrativa adota o olhar dos jovens e desconsidera o papel dos mais experientes e não consegue dar o peso emocional para a presença dos três na trama.
Ainda que algumas sequências dramáticas sejam concebidas para impactar os espectadores, propósito e concretização contrastam a ponto de o efeito pretendido não ser alcançado. A princípio, o resultado final poderia ser uma homenagem impessoal, fria e distanciada de quem não consegue equilibrar a admiração pelo passado e o esforço pela novidade. Com o desenvolvimento do terceiro ato, os comentários que seriam cômicos ou metalinguísticos (“o filme “Stab” desanda a partir do quinto”, “a produção é feita pensando nos fãs”…) abrem brechas para pensar um pastiche mal produzido que apenas puxa do original easter eggs, referências e resoluções visuais/narrativas sem criatividade. Ao fim e ao cabo, esta emulação esvazia de “Pânico” o mistério, a metalinguagem e a tensão deixando um vazio total no lugar. Melhor dizendo, deixa o olhar de superioridade arrogante do “horror elevado” de quem observa de cima de um pedestal o que julga menos profundo e não encontra nada realmente marcante.
Um resultado de todos os filmes que já viu.