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“PASSAGEM” – A AUSÊNCIA DO DESAPARECER

A exploração do melodrama é sempre uma grande porta de entrada para o desenvolvimento de complexas personagens. De traumas do passado a sonhos inalcançados, são muitos os contextos que permitem a criação de ramificações psicológicas, elos entre a superfície externa e o que há de mais internalizado. Ao trabalhar com a Sétima Arte, todavia, é sempre difícil encontrar o equilíbrio entre as informações confiadas aos símbolos visuais, às cedidas ao roteiro e as confiadas ao elenco, por vezes resultando em envoltórios desprovidos de uma caracterização realmente tocante. Embora flerte com vários elementos interessantes, essa é uma das problemáticas atravessadas por PASSAGEM.

Após ser vitimizada por uma explosão de consequências físicas e emocionais, a militar Lynsey é obrigada a deixar o Afeganistão e retornar para a sua pequena cidade natal. Apesar das dificuldades em recuperar gradualmente a sua capacidade motora, ela passa a temer a reentrada em sua pacata vida cotidiana, dona de uma função secundária como limpadora de piscinas e de um relacionamento mal resolvido com a própria mãe. Forçada a lidar com os próprios traumas, ela encontra um possível recomeço em sua conexão com James, um homem que também vive à deriva da própria família e que carrega as consequências de seu próprio incidente.

Marcando a estreia na direção de Lila Neugebauer, o filme logo se destaca pela extrema confiança que concede aos rostos que o conduzem. Ela compreende que, apesar da possiblidade de registrar os eventos explosivos que os antecedem, a verdadeira força está no presente melancólico daquelas personas, e logo conquista uma aproximação entre público e personagem. O foco nesses últimos, e especialmente no talento do elenco – encabeçado por Jennifer Lawrence e pelo agora também indicado ao Oscar, Brian Tyree Henry – em transpor a gama emocional de cada um deles, gera logo uma aproximação entre público e personagem que nos convida a logo mergulhar nas tentativas de decifrá-los.

(© Apple TV+ / Divulgação)

Isso subtrai uma possível superioridade daqueles que testemunham tais trajetórias, forçados a compreendê-los camada através de camada, e lidar inclusive com o propósito da direção de jamais descrever completamente as personagens. Ela compreende um distanciamento necessário que diz respeito à elaboração de sequelas humanas, impassíveis de uma racionalização completa através da imagem.

Por conta disso, chama a atenção uma espécie de involução propositada no que diz respeito ao manejo estilístico do filme, tanto para o bem quanto para o mal. Se por um lado a predominância dos planos com baixa profundidade de campo dialogam com o afastamento atravessados pela protagonista, condenada ao deslocamento pela incapacidade de se sentir parte de algo, por outro a banalidade dos tons cinzentos condena a obra à apatia constante.

Mesmo que o universo temático da produção esteja associado a tons emocionais desse tipo, a similaridade visual desse projeto a tantos outros – e especialmente vindo de um que busca a diferenciação pelo viés feminino em um debate dominado por vozes masculinas – impede um relacionamento orgânico dos atores com o conjunto estruturado ao seu redor. É como se os demais recursos cinematográficos sofressem de uma simplificação voltada a arremessar o filme sobre os seus ombros.

Por conta disso, a mesma ausência de uma recriação explicíta do passado das personagens peca contra o seu aprofundamento, não havendo peças o suficiente para a sua estruturação. Seria injusto negar a consciência de Lila por detrás dessas escolhas, mas tal caminho acaba arruinando discussões interessantes que florescem nos diálogos entre Lynsey e James, por exemplo.

Ao discutir sobre o apagamento de personalidades – estejam essas oprimidas por episódios perseguidores ou simplesmente por um interminável senso de deslocamento -, o próprio filme escolhe por desaparecer, mirando na cansativa fotografia digital, desprovida de quaisquer senso de manuseio de texturas e cores, que tem assolado as principais produções voltadas ao streaming – sendo esse uma peça da coleção da Apple TV+.

Por conta disso, “Passagem” adentra o melodrama por tratar de questões temáticas claras e mirar no desenvolvimento objetivo de suas principais personagens. Em uma espécie de recusa das demais ferramentas operísticas que orbitam essa esfera artística, entretanto, Lila Neugebauer acerta na administração de seu elenco, mas peca por se desviar de explorações visuais que poderiam dimensionar as mudanças emocionais de figuras presas entre a atuação e a realidade de seus dramas internos. Tem-se assim o levantamento de um debate interessante, mas incapaz de deixar a mesmice por sua incompatibilidade com a unidade estilística e original que o projeto poderia alcançar.