“AS HISTÓRIAS DE MEU PAI” – Lentidão para encontrar o tom
“Eu queria que o filme tivesse uma espécie de fantasia que ecoasse a loucura desse pai. Inventar sua vida, às vezes pode ser mais alegre do que a vida real”. A declaração do diretor Jean-Pierre Améris caracteriza a abordagem de AS HISTÓRIAS DE MEU PAI, traduzindo a contradição que mais afeta a apresentação da obra. Seria coerente criar uma narrativa sobre abuso familiar e estresse pós-traumático a partir de noções como fantasia e alegria? Um desequilíbrio natural compromete a encenação até que o tom apropriado seja atingido e proporcione um conjunto de sensações aflitivas decorrentes de ilusões patológicas.
Baseando-se no romance “Profession du père” de Sorj Chalandon, o filme segue um garoto de 12 anos chamado Emile e seu pai André na Lyon da década de 1960. O protagonista ouve histórias em que o pai alega ter sido campeão de judô, paraquedista, jogador de futebol e conselheiro pessoal do general Charles de Gaulle. Um dia, André disse que De Gaulle o traiu e se tornou uma ameaça para a França, sendo então necessário assassinar o governante e manter a Argélia sob domínio francês. Ao levar o filho para uma série de delírios crescentes, toda a família é colocada em situações cada vez mais perigosas.
Não leva muito tempo para se perceber que as histórias do pai são fruto de uma mente perturbada. Viver experiências arriscadas com alguém chamado Ted no Exército, manter com ele uma amizade até quando o norte-americano entra na CIA e fazer parte de uma organização secreta são alguns exemplos dos delírios que norteiam sua relação com o filho. À medida que possíveis explicações para as ilusões surgem, temas muito sérios veem à tona como traumas pós-guerra, xenofobia, racismo, exposição de crianças a fatos inadequados e violência doméstica. O pano de fundo histórico segue a mesma linha ao tratar dos impactos da guerra de independência da Argélia, da discriminação contra argelinos ou descendentes e da formação de grupos paramilitares clandestinos contrários à autonomia da Argélia. Logo, torna-se problemático encenar essas questões como se Emile estivesse em uma missão cômica na qual, por exemplo, escreveria nomes ligados a associações terroristas nos muros da cidade ou agiria como um espião a partir do uso de walkie talkies com André.
A abordagem da condição psicológica de André também abre brechas para a criação de um tom duvidoso para a narrativa. Benoît Poelvoorde se esforça para dar ao personagem um temperamento imprevisivelmente explosivo, que pode surtar diante de uma notícia de TV, e uma postura carinhosa deturpada, que demonstra afeto pelo filho apenas quando seus surtos conspiracionistas são atendidos. Nesse sentido, é curioso que André sempre possua um artefato material para dar vazão aos seus delírios, como as cartas forjadas para se comunicar com Ted e pressionar o governo. O ator até passeia por nuances dramáticas que vão da aparência de cuidado paternal à confusão mental e à violência direta, mas o enfoque dado pelo diretor não escapa do paradoxo estabelecido entre o que se vê e o que se sente. Mesmo que as ações e os acontecimentos tenham, em teoria, um sentido agressivo, a construção das cenas mantém por parte do menino um olhar predominantemente admirado pelo pai.
Algumas críticas podem comparar o filme a “Jojo Rabbit” no que tange ao uso do humor dentro de uma temática controversa. Embora o trabalho de Taika Waititi utilize a comédia para tratar o nazismo sob o viés do patético, o tom não parece deslocado para a proposta. Já as “As histórias de meu pai” parece indeciso quanto ao direcionamento que deveria dar à narrativa até dispensar o humor ou referências leves para adotar o drama de vez. A porta de entrada para uma encenação mais dramática e rigorosa é o efeito que André tem sobre o filho, e não apenas nas sequências evidentemente violentas. Emile manifesta as influências negativas do pai nos desenhos que faz e nas “missões” que aceita cumprir à noite para grande preocupação da mãe. É interessante também perceber que a entrada do jovem em um universo delirante faz o cotidiano ganhar contornos quase fantasiosos com e a decupagem assumir um estilo conscientemente artificial, como a cena tipicamente de um filme noir no momento em que Emile tenta despachar uma carta.
Quando Luca entra no colégio de Emile, o drama ganha ainda mais força no sentido de mostrar que as “fantasias” criadas estão longe de ser positivas. O recém-chegado é um Pied-Noir, termo que se refere a cidadãos de ascendência europeia que viveram nos territórios franceses do norte da África, e logo é alvo de preconceitos dos colegas de turma. A aproximação entre os dois meninos promove uma reorientação forte do protagonista, pois este se mostra cada vez mais interessado em participar das alucinações do pai e decidido a levar o amigo para a mesma situação. É impactante ver duas figuras tão jovens lidarem com aspectos violentos impróprios para suas faixas etárias, principalmente o manuseio de armas de fogo e os planos contra Charles de Gaulle. A contraposição entre os mundos dos dois meninos reforça a ideia de que eles estariam se afastando de suas realidades naturais e entrando em dimensões nocivas. Basta observar o interesse que Luca demonstra apenas com o olhar para uma menina de sua idade e a transformação vivida por um Emile cada vez mais semelhante com seu pai.
Por mais que André e Emile chamem maior atenção por serem as principais variáveis do conflito central, Denise também é uma personagem significativa para a dinâmica familiar. A mãe é vítima dos abusos emocionais e físicos do marido, notadamente a sequência em que é proibida de entrar em casa após ter saído para um concerto, e apresenta um comportamento que não pode ser lido de modo apressado. Apesar de não fazer parte dos delírios criados pelo esposo e absorvidos pelo filho, ela tem influência relevante para a saída da comédia e para a entrada do drama dentro do tom geral. É possível que se façam questionamentos quanto às suas reações ao sofrer violências ou presenciar algo ruim contra Emile, em especial a sensação de que prefere desconhecer o que acontece em sua casa e não interferir na situação. Nos momentos em que a câmera registra Denise, Audrey Dana não precisa de uma atuação tão chamativa para demonstrar o sofrimento que internaliza para o bem de sua família porque a expressão contida de dor silenciosa já é o bastante.
Em uma perspectiva imediata, “As histórias de meu pai” encontra o tom de modo relativamente tardio, mas consegue desenvolver a escala de acontecimentos através da profunda mudança de comportamento de Emile. Jules Lefebvre contribui decisivamente para a percepção das consequências do estado do pai para sua família, aproximando-se cada vez mais de uma personalidade mentirosa, manipuladora e egocêntrica que em nada lembraria o menino inocente e vulnerável de antes. Em um subtexto mais denso, o filme mostra que os três personagens principais criaram suas próprias fantasias patológicas: André criou para si um mundo falso em que seria vital para a salvação da França, Emile participou da ampliação das ilusões do pai para uma escala perigosa e Denise projetou uma realidade idealizada para a família. E nos três casos, é possível sentir as fragilidades de pai, filho e mãe, porque André precisa de um trecho de um filme para expressar suas emoções, Emile desabafa em busca de um carinho genuíno e Denise busca saídas mais fáceis em analogia à procura de peixes em um lago.
Um resultado de todos os filmes que já viu.