“OS BANSHEES DE INISHERIN” – A normalização da maldade
O lado sombrio de OS BANSHEES DE INISHERIN, presente no título (na mitologia celta, banshee era uma espécie de fada maligna capaz de prever a morte), demora para aparecer. Quando aparece, todavia, o filme é desalentador em relação à condição humana na vida em sociedade. Em um invólucro de comédia seca é preparado um conteúdo de dramático esvaecimento.
Pádraic e Colm são amigos há muitos anos e rotineiramente vão juntos beber no bar da cidade. Certo dia, Colm lhe comunica não querer mais sua amizade nem sequer sua companhia. Pádraic, porém, não se dá por vencido, o que pode ter graves consequências.
É belíssimo o tom contemplativo que Martin McDonagh dá ao longa, do qual é diretor e roteirista. A fotografia é nada menos que deslumbrante, com um início idílico (a grama bem verde, o céu e o mar em gradações acinzentadas de azul) que é quase angelical – a despeito do evidente frio de Inisherin, perceptível pelo figurino compatível com o clima. A religiosidade, inclusive, se faz presente tanto de maneira visual, como em cenas que se passam em uma igreja ou nos diversos ornamentos cristãos (estátuas, cruzes, quadros etc.), quanto no discurso de uma das personagens (a de pior índole), que, preconceituosa e hipocritamente, associa o protestantismo a um assassino.
Além disso, são vários os planos de mera contemplação de uma paisagem bucólica pacata, por exemplo exibindo o pôr do sol, o mar e os animais (gaivotas, bodes etc.). É nestes momentos que a inebriante trilha musical de Carter Burwell se destaca mais, seja pela Leitmotiv de oito notas iniciais e uma quase repetição delas, seja pelas composições claramente inspiradas na Sonata para Piano nº 14 (“Sonata ao luar”), de Beethoven (nomeadamente, “The mistery of Inisherin” e “Night falls on Inisherin”). Progressivamente, contudo, McDonagh utiliza ângulos e enquadramentos para dissolver a imagem pacífica inicial, sobretudo porque os planos gerais verticais, essencialmente bucólicos, dão lugar a planos médios horizontais, nos quais os pequenos muros de pedras e mesmo as residências se assemelham a um cemitério.
No roteiro, McDonagh não perde tempo para apresentar o incidente incitante: “só não gosto mais de você”, diz Colm para Pádraic, negando que este tenha feito ou falado algo errado. Estruturalmente, o design narrativo é majoritariamente clássico, com complicações progressivas e um momento de crise, porém falta à obra um clímax cuja potência esteja à altura da estética. A punch scene, nesse sentido, decepciona; igualmente, o filme como um todo pode ser facilmente esquecido. Por outro lado, a narrativa é dotada de uma complexidade que não é perceptível à primeira vista, mas dependente de interpretação – tanto no sentido da atuação dos artistas, quanto no sentido da leitura do espectador (no segundo caso, vale a atenção às minúcias).
A atuação de Colin Farrell é devastadora: Pádraic é extremamente ingênuo e fica dolorosamente sem reação com a notícia dada pelo até então amigo. Se é previsível uma mudança na sua personalidade, o mesmo não pode ser dito sobre como essa modificação ocorrerá. De todo modo, Farrell apresenta o protagonista como alguém frágil e pueril cuja maldade é fazer com que Colm perca tempo à toa. Brendan Gleeson é um excelente parceiro de tela, ainda que Colm tenha personalidade absolutamente distinta da de Pádraic. Gleeson o interpreta como alguém fechado em si mesmo, por vezes assumidamente ríspido, mas interessado em coisas que durem – conceito que Pádraic é provavelmente incapaz de compreender. O protagonista não é o único “tapado” da ilha, pois ao seu lado está Dominic, um jovem cujo arco narrativo torna ainda mais tensa a drama. O trabalho de Barry Keoghan no papel é quase tão bom quanto o de Farrell, pois os dois se identificam pela bondade que é por vezes mal vista pelos outros. Cabe à Siobhán de Kerry Condon acolher, mesmo que de maneira diversa, os dois rejeitados (e, paradoxalmente, rejeitando-os).
É empolgante o diálogo de um bêbado Pádraic com um desalmado Colm no bar. Em uma ilha onde as pessoas são motivadas por informações sobre as vidas alheias (principalmente a escancaradamente fofoqueira sra. O’Riordan), onde a guerra ocorre em um mundo distante e onde as pessoas não têm o que fazer, Colm parece querer algo como um legado. “Que legado melhor que uma forte amizade partilhada por momentos inestimáveis?”, deve pensar Pádraic. Siobhán, a mais inteligente da localidade, é quem percebe que Inisherin não condiz com a “simpatia” de seu irmão. Por trás de uma preliminar camada de humor seco do afiado texto de McDonagh jaz uma desilusão áspera: quem é ruim pode se revelar pior; quem é bom, se desafiado a viver em sociedade, ou é tomado pela apatia (quando não loucura), ou se corrompe pelo que o rodeia. Paulatinamente abandonando a comédia, “Os banshees de Inisherin” denuncia a trágica normalização da maldade.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.