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“I WANNA DANCE WITH SOMEBODY – A HISTÓRIA DE WHITNEY HOUSTON” – Se esquece da pessoa

Mesmo reconhecendo a maior dificuldade inerente às cinebiografias, qual seja, compilar de maneira fidedigna e coerente os eventos da vida do biografado ou da biografada, I WANNA DANCE WITH SOMEBODY – A HISTÓRIA DE WHITNEY HOUSTON incorre em um erro ainda mais primário em relação a essa dificuldade. Algo se sobre sobre o que aconteceu na vida da cantora, porém muito pouco se sabe sobre a pessoa que ela era.

O filme mostra a vida de Whitney Houston antes da fama, quando cantava como back vocal para a sua mãe, sua posterior ascensão meteórica, seus relacionamentos e a drogadição que a levou a um triste declínio. Acima de tudo, mostra o quão potente era uma voz que ficou conhecida como A Voz, que quebrou diversos recordes musicais e fez dela uma das maiores cantoras da história.

(© SONY / Divulgação)

A escolha de Naomi Ackie para o papel principal não é ruim, principalmente porque os problemas do filme não estão no elenco. Stanley Tucci, no papel do empresário Clive Davis, fornece credibilidade à película (já que se trata de um ator consagrado e bastante expressivo), já Clarke Peters tem em John Houston um pai autoritário e intransigente que contrasta com a inicialmente frágil Nippy (apelido de Whitney). Nafessa Williams tem bons momentos com Robyn, enquanto Tamara Tunie poderia ter mais tempo de tela. Eis um primeiro, ainda que menor, defeito do longa: personagens que rodeiam Whitney aparecem e reaparecem sem coesão narrativa, apenas como conveniência para a cena que se apresenta.

O roteirista do longa é Anthony McCarten, responsável por dois outros textos cinebiográficos: “A teoria de tudo” (2014), e “Bohemian rhapsody” (2018). Há entre os três, contudo, uma diferença fundamental: no filme de 2014, o script teve por base um livro; no de 2018, a base foi uma história em que ele foi coautor; apenas o de 2022 (lançado no Brasil em 2023) o roteiro é exclusivo de McCarten, sem uma referência específica. Não parece ser coincidência ser este o seu pior trabalho (e o de 2014 o melhor).

Estruturalmente, o texto não poderia ser mais mecânico, utilizando por molde o arco narrativo estilo Cinderela: depois do crescente sucesso (ascensão), Whitney vive crises (queda) pessoais e, por consequência, profissionais, que acaba superando (ascensão). Entretanto, falta organicidade ao roteiro, que parece mais preocupado em apontar todos os fatos da vida da artista (o que denota dificuldade de escolha, algo essencial em cinebiografias), quase matematicamente (mesmo que não cronologicamente) do que criar uma narrativa. Ainda mais grave, esses fatos não são aprofundados. Por exemplo, a discussão de Whitney com Robyn após visitarem o pai não faz sentido tanto porque o que a cantora (passa a) afirma(r) querer representa muito mais do que o pai exigiu quanto soa como uma mudança demasiado brusca e antinatural de pensamento. Outro exemplo é a modestíssima carreira de atriz de Whitney e sua amizade com Kevin Costner: é no mínimo estranho mencioná-lo como amigo, expor que uma das principais canções de sua carreira se deve a uma indicação dele e não colocá-los juntos em sequer um diálogo.

Também falta ângulo à película, pois os assuntos são abordados sem reflexão. O roteiro não se furta em citar a homoafetividade de Whitney, mas se limita a isso: citar. O foco poderia estar na drogadição, mas nisso a opção da diretora Kasi Lemmons é claramente a brandura, com poucas cenas capazes de revelar as consequências dos entorpecentes. Algo similar ocorre com o relacionamento com Bobby Brown (Ashton Sanders), dada a opção escandalosa de omitir a violência doméstica perpetrada por ele. Brown pode não ter sido o crápula pintado pela mídia, mas o olhar de Lemmons é de grande benevolência. Outra opção de enfoque seria a negritude, havendo cenas que expressam o quanto Whitney foi questionada por ser uma negra cantando o que brancos querem ouvir. Lemmons, uma mulher negra, faz uma mise en scène inteligente a esse respeito, como ao colocar um provocativo álbum de Michael Jackson ao fundo e ao mostrar apenas homens brancos carregando móveis para a mansão da cantora. Contudo, sua visão parece romântica demais mesmo nos temas espinhosos. É encantador assistir a cenas de recriação dos grandes momentos da carreira d’A Voz – mas isso não basta para um filme.

A montagem da produção pode não ser frenética como a de “Bohemian rhapsody”, mas exagera em recursos desnecessários – há cortes em demasia e o paralelismo nem sempre funciona (sim com “I will always love you”, não com “It’s not right but it’s okay”). O que é mais importante é que, tanto no longa de 2018 (menos) quanto em “A teoria de tudo” (mais), é possível compreender suficientemente a trajetória dos biografados em seus conflitos, desejos e obstáculos. Em “I wanna dance with somebody”, diferentemente, quando a protagonista declara não saber se consegue “continuar sendo tudo para todo mundo”, não é possível concluir com clareza a que ela se refere. O problema seria uma repressão da homoafetividade? O modo como o pai a trata? O relacionamento com Bobby? Lidar com o sucesso e a mídia? Livrar-se do vício? Uma eventual autocobrança excessiva? O filme não responde, tampouco fornece as ferramentas para que o público o faça. Alguns desses elementos se fazem presentes, mas aquém do necessário. A obra exalta a cantora, mas se esquece da pessoa.