“DECISÃO DE PARTIR” – Os excessos de Park Chan-wook
Poucas características são tão contagiosas quanto a elegância que personagens duvidosos são capazes de incorporar. Burlando os limites que separam a moralidade de sua própria essência, não há nada como se deixar ser seduzido pelas aparências que revestem uma personalidade obscura, e que nos convida a testemunhar seus mais hediondos traços e ainda assim investir em justificativas que nos permitam apoiá-los. É com base nesse senso que diversos suspenses encontram a sua base, investindo em uma dualidade capaz de sustentar longas premissas justamente em função de sua complexidade humana. Munido de boas ideias, mas nem sempre bem executadas, esse é o caso de DECISÃO DE PARTIR, filme eficiente mas que peca ao não se apaixonar o suficiente por suas próprias personagens.
Investindo em uma busca por um novo propósito e que mantém uma desgastante insónia, o renomado detetive Hae-Joon resolve assumir a investigação de uma morte curiosa. Ele aceita procurar o possível culpado pela morte de um senhor encontrado ao lado de um penhasco, encontrando na esposa do falecido, a intrigante Seo-Rae, a sua principal suspeita. Entre tocaias e interrogatórios, Hae-Joon se apaixona pela moça e passa a questionar toda a sua vida.
Não há como alegar que a direção de Park Chan-wook não transborda em estilo. Sábio em reconhecer a fragilidade das máscaras pelas quais nos escondemos, ele associa signo e realidade com um dinamismo bastante impressionante, mergulhando na confluência vivenciada pela dupla de personagens pela forma como redefine planos e funde ambientes e mentalidades em função da montagem.
Isso se coloca como um recurso interessante, que de cara abraça a libertação dos códigos cinematográficos para associar os seus possíveis truques à atmosfera fantasiosa com a qual as personalidades da dupla se tornam voláteis. É como se as raízes hitchcockianas da premissa – haja visto o grande interesse do lendário diretor inglês em fragmentar índoles humanas em nome do suspense – o permitissem fugir à chave realista, infectando a obra com tons fantásticos muito bem vindos.
Para além dos truques de transição, chamam a atenção igualmente alguns dos enquadramentos mais estilizados, que para além da autenticidade estética se conectam pela atenção ao olhar. Câmeras subjetivas e visões em “primeira pessoa” atentam para a presença da ótica, grande instrumento empregado pelo nosso protagonista na tentativa de definir as presenças humanas que o orbitam.
Merece destaque ainda como nesse processo investigativo Seo-Rae (Tang Wei) se define como uma extensão de seu próprio parceiro de cena, que tenta compreender a sua própria natureza em suas investidas. Exemplos disso estão na forma inteligente como Wook intercala entre os inserts das câmeras digitais das sessões de perguntas – e que pela própria textura atentam para esse ideal da maleabilização do caráter – e os planos das próprias personagens, oscilando, e mesmo com o foco das lentes adaptados para alternar entre os dois rostos, para exemplificar como os dois se completam.
Por essas e outras a obra renova a originalidade do diretor coreano, que ainda alcança um nível ainda mais profundo no momento em que associa, de maneira até metalinguística, essas ferramentas de linguagem ao campo onírico produzido pelo inconsciente humano. Em um diálogo emblemático, a mulher misteriosa auxilia Hae-Joon (Park Hae-il) com seus problemas de sono, revertendo-os temporariamente ao estimulá-lo à associação de fantasias envolvendo o casal improvável como um lugar de segurança enquanto dorme.
Ao fazê-lo, o detetive inaugura uma verdadeira maldição sobre si mesmo, condenado eternamente a retornar a esse antro falsamente imagético. Esse reconhecimento último, inclusive, se imprime até na direção de arte, que imprime pinturas artificiais nos fundos que compõem certos ambientes, como é o caso das ondas da casa de Seo-Rae, que serão brutalmente resgastadas ao desfecho.
É com isso em mente, entretanto, que o filme peca ao inflar justamente a sua própria história, e, para além do roteiro, as próprias ideias do cineasta. Interessado muito mais no impressionismo de suas habilidades, o diretor desvencilha, muitas vezes, esse universo de fragmentações, da dupla representada no centro da tela. Atropelados por reviravoltas nem sempre bem acabadas, ambos tem os seus exercícios de decifração dupla mitigados pelo contexto geral que movimenta a narrativa, por vezes falha em não preservar uma maior paciência de valorização do romance florescente entre os dois.
Tal aspecto está longe de determinar um desvio da atenção principal que pertence à interessante dupla, mas mesmo que o dualismo entre performance e verdadeira condiza com o espírito geral do longa, é estranha a identificação de uma certa inversão, que se inicialmente entende a desconstrução de suas personagens como principal fio condutor, acaba por colocá-los como meras vítimas do organismo próprio que a narrativa constrói dentro de si.
Isso acaba simplificando as duas figuras e não convencendo como poderia em relação ao amor que floresce entre ambos, mas ao menos fica longe de naufragar uma produção com tamanha personalidade. Sendo assim, e embora “Decisão de partir” peque por jamais se entregar totalmente ao charme de suas personagens, talvez por uma leve egolatria do próprio diretor, o filme é um interessante romance que bem se aproveita das liberdades criativas autorizadas pela Sétima Arte.