“OS FANTASMAS CONTRA-ATACAM” – Tradução do clássico
Vinte e cinco de dezembro é uma data que pode conter diversas tradições. Como festividade cristã, pode ser a celebração do nascimento de Jesus Cristo com momentos de orações e símbolos religiosos, como o presépio. Como festividade ecumênica, pode representar amor e união familiar com a ceia de Natal e a troca de presentes. E como época especial do ano, pode fornecer hábitos específicos dentro do espírito natalino, como assistir a “Esqueceram de mim“, “O Grinch” e a outros títulos similares. Outro filme que se encaixa nesse período é OS FANTASMAS CONTRA-ATACAM, uma comédia que diverte, emociona e reflete sobre as possibilidades de adaptar histórias e sentimentos clássicos.
A adaptação também faz parte do trabalho de Frank Cross, um diretor de rede de televisão. Ele está fazendo mais uma versão do clássico literário “Um conto de Natal” de Charles Dickens para um especial televisivo na véspera do Natal. Por ser um sujeito insensível, egoísta e carrancudo, recebe a visita de um falecido colega que o avisa sobre a iminente chegada de três fantasmas. Cada um deles irá mostrar fatos e pessoas que podem levar Frank a repensar sobre sua vida e suas escolhas, sendo assim a única chance de salvar seu destino.
É enganoso pensar que adaptar uma obra para uma mídia diferente seria transpor literalmente o material original para outro suporte sem diferenças. Na realidade, este processo é um trabalho criativo de tradução para outra linguagem e anseios artísticos do realizador. Logo, o filme se apropria mais livremente do livro de Charles Dickens, que conta a história de Ebenezer Scrooge, um homem avarento, que trabalha em um escritório e abomina o período natalino até ter sua vida alterada pela chegada de três espíritos. A apropriação é livre porque o diretor Richard Donner leva a premissa básica do século XIX para o século XX ao tornar o protagonista um diretor de rede de televisão em um contexto de difusão da indústria cultural de massa e constituição de atitudes e mentalidades através de programas televisivos. As escolhas visuais refletem como a narrativa retrata o Natal fora dos cânones tradicionais, afinal o comercial que abre a produção insere no universo do Papai Noel, da Mamãe Noel e do Polo Norte elementos nada usuais relativos ao gênero ação. É uma combinação que mistura comédia e ação, algo já trabalhado pelo cineasta em sua carreira como em “Os goonies“, “Máquina mortífera” e “Superman“.
O mérito da decisão dos roteiristas Mitch Glazer e Michael O’Donoghue de levar a história original para outro período também se deve à escalação de Bill Murray para viver Frank Cross. Na década de 1980 e início dos anos 1990, o ator criou uma persona cômica eficiente ao interpretar personagens arrogantes, egoístas, donos de uma personalidade impiedosa e de uma postura superior sem afastar a empatia e o encanto do público, como se pode observar nos filmes “Caça-fantasmas” e “Feitiço do tempo“. Por isso, o protagonista é um figura perfeita para seu arquétipo, sendo capaz de desprezar o espírito natalino ao recusar o convite do irmão para partilharem esse momento, considerar a festividade apenas uma chance de ganhar dinheiro, demitir um funcionário justamente em uma data de congraçamento e harmonia, produzir um especial de Natal para sua emissora sem os sentimentos básicos da data e desvalorizar o trabalho voluntário de sua ex-namorada Claire. Bill Murray constrói seu personagem passeando muito bem tanto por um tipo de humor absurdo (o “debate criativo” na reunião sobre a adaptação televisiva de “Um conto de Natal“) quanto ácido (as atitudes reprováveis no estúdio de gravação).
Um protagonista assim faz ressaltar a proposta essencial da obra de Charles Dickens, adaptada ou traduzida para o cinema e para os anos 1980. As alterações podem se fazer presente em função da mídia e da temporalidade, mas o princípio central não se modifica: os fantasmas do passado, do presente e do futuro aparecem para Frank e o fazem vivenciar passagens específicas de sua vida, observar outras pessoas aproveitando a véspera de Natal e projetar seu destino caso não mude sua mentalidade fria e egoísta. Ao longo de cada um dos três percursos, o espectador é apresentado à sua infância sem o amor paterno, à aproximação de Claire e a separação da namorada; e a outras famílias não tão bem sucedidas financeiramente, mas prósperas em termos emocionais por desfrutarem da magia do final do ano. Enquanto isso, Richard Donner trabalha com maior ou menor inspiração as sequências fantásticas da trama, destacando-se pela concepção visual da viagem ao passado conduzida por um taxista e da projeção do futuro destrutivo através de uma figura monstruosa em um elevador, e optando por uma abordagem convencional sem criatividade imagética na fada condutora pelo presente.
Da mesma maneira que a construção visual e o personagem principal precisam se transformar, as reações sensoriais também incorporam outras possibilidades. O humor se desdobra em outros estilos além daqueles já criados anteriormente, passando a ter a comédia besteirol de jogar água em alguém, gags visuais com a repetição de cenas em que uma personagem é ferida por acidentes no set de filmagem ou o funcionário demitido é colocado em situações cada vez mais desagradáveis, e a comédia física na qual Bill Murray é atacado fisicamente de modo cômico, faz caras e bocas e solta gritos inesperados. O que poderia soar como uma junção deslocada de registros cômicos diversos ganha uma unidade coesa porque, em um universo fantasioso como aquele, todos se articulam entre si. Além disso, a comédia se encontra com o drama através dos momentos comoventes criados pelo contato de Frank com seu passado e futuro, e da trilha sonora assinada por Danny Elfman que combina acordes ou inserções espirituosas com notas dramáticas mais sutis.
Conforme a narrativa se desenvolve e Frank passa por um processo de autorreflexão e transformação, ficam mais evidentes os paralelos entre o protagonista e Ebenezer Scrooge embora sob outro contexto. O paralelismo é estabelecido para criticar a figura do empresário inescrupuloso e a subversão da arte pelo interesse mercadológico estrito, afinal a obra de Charles Dickens é manipulada pelo desejo da audiência a qualquer custo. Nesse sentido, o programa televisivo transmitido ao vivo no dia vinte e quatro de dezembro é deturpado para ter um trailer semelhante a um filme de ação frenética e acrescentar em sua realização elementos apelativos como a insinuação da nudez feminina. A cena que evidencia com maior clareza a proximidade entre os dois personagens apesar das especificidades de cada tempo é aquela que mostra a reação de Frank a uma tragédia ocorrida após a exibição do trailer. Acima de tudo, o simbolismo ganha força no terceiro ato quando o protagonista recebe a visita de um dos espíritos em primeiro plano e o telão narra os mesmos acontecimentos no livro de Dickens em segundo plano.
Por consequência, “Os fantasmas contra-atacam” trabalham em alguns níveis a metalinguagem. Em uma dimensão mais imediata, as sequências que tratam as filmagens de “Um conto de Natal” para a TV já comentam sobre o fazer artístico propriamente e os trabalhos nos bastidores. Em camadas mais profundas de assimilação, a produção também propõe um exercício metalinguístico centrado nas reflexões quanto às possibilidades e aos limites das adaptações artísticas. Adaptar não significa, por exemplo, levar a história do livro de Dickens de forma idêntica para o cinema, porém também não abre um espaço total para inserir armas, troca de tiros e piruetas sem qualquer conexão com o Natal. Alterações podem ocorrer e não, necessariamente, precisando ficar submissas ao vago conceito “espírito da obra” porque o Natal clássico e a literatura clássica ganham aqui uma nova e eficiente roupagem.
Um resultado de todos os filmes que já viu.