“PALOMA” – Religiosidade cínica e preconceito endêmico [46 MICSP]
Segundo a protagonista de PALOMA (que dá nome ao filme), “todo mundo precisa de um sonho”. Alguns sonhos são irrealizáveis, alguns precisam de adaptações e outros estão ao alcance. Quando um sonho depende da flexibilidade de instituições tradicionais, talvez seja melhor mudar de sonho.
Em uma cidade de interior, Paloma é uma mulher trans que está economizando para pagar a festa de seu casamento com o namorado. A dificuldade é que, a despeito de sua fé, o padre não aceita realizar uma cerimônia tradicional, o que faz com que ela precise buscar alternativas e enfrentar inúmeros obstáculos.
Baseado em fatos, o roteiro escrito pelo diretor Marcelo Gomes junto de Gustavo Campos e Armando Praça tem a transfobia estrutural não como um ponto de partida, mas uma premissa que cresce com o desenvolvimento da narrativa. Em um primeiro momento, um comentário debochado sobre a hipótese de Paloma se casar em uma igreja católica é motivo de incômodo, mas não de abatimento. Ela está mais do que decidida e sabe que as mesmas pessoas que falam “gente como tu” (no trabalho) são as que ficam sem resposta quando ela as enfrenta. Com o avanço da trama, contudo, ela enfrenta a violência e o preconceito, dentre outros fatores – é o preço de seu sonho.
É verdade que, antes dessa procura por uma cerimônia tradicional, a vida de Paloma era satisfatória. Sua relação com Zé era de parceria e de um romance quase literário. O diretor filma planos-detalhe da protagonista passando os dedos no cavanhaque e na sobrancelha do namorado; a paixão é carnal e o sexo é fator importante, mas ele a respeita e a trata com carinho (embora fique claro que ela é a mais apaixonada no relacionamento). Entretanto, uma vida satisfatória nem sempre é suficiente. O casamento surge de maneira quase onírica, como quando Paloma narra para a filha um conto de fadas enquanto brinca com bonecas (como se fosse ela a criança sonhando) ou nas cenas em que a cor branca se destaca na fotografia (a espuma do banho, o vestido da noiva fora de foco na frente e seu rosto ao fundo etc.).
Paloma sabe que Zé talvez não seja tão aberto à ideia quanto ela, razão pela qual o pedido é acanhado: discursivamente hipotético e fisicamente sem troca de olhares (ela fica de costas para ele, na cama). A transfobia é impessoal, porquanto estrutural, de modo que Gomes não mostra as pessoas que praticam violência (física ou verbal) contra Paloma. Porém, isso não significa que ela não possa ser vítima de uma violência indireta, como no caso da noiva debochada ou nos detalhes do comportamento de seu namorado. Quando Zé a coloca como sereia na praia, isso pode ser lido como uma declaração de amor, mas é bastante sugestivo o fato de ele querer enterrar o corpo dela sob a areia. Pode ser que ele não seja tão resolvido quanto ela precisa para a empreitada por um casamento.
Trata-se, de fato, de uma empreitada, na qual Paloma se depara com problemas na religiosidade interiorana. Mesmo que sua fé não seja abalada, o filme coloca em xeque a famosa frase segundo a qual “o que Deus une homem nenhum separa”. O padre reconhece que o mundo mudou, declarando, por outro lado, que a Igreja não mudou. É gritante a dissonância entre a realidade e os mandamentos do catolicismo, algo que é relevado por Paloma porque ela ainda assim quer realizar o seu sonho.
Kika Sena interpreta Paloma com força: apaixonada por Zé, ela se declara intensamente; sonhando com seu casamento, ela entra em transe. A interação com Ivanildo é promissora e traria novas possibilidades para a protagonista, mas os roteiristas optam por ampliar a primeira hora de filme, quando ela está na ideação de seu sonho, fazendo uma continuação mais enxuta. O filme retrata uma religiosidade cínica e um preconceito endêmico, mas não fornece a Sena caminhos ousados do ponto de vista de desenvolvimento narrativo. Subsiste um vácuo que poderia ser preenchido com um algo a mais que desse destaque ao longa.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.