“DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL” – Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça [46 MICSP]
O cinema novo brasileiro tem em DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL o epítome do engajamento político do movimento, escancarando a miséria de uns e denunciando a alienação, quando não a maldade, de outros. Os recursos técnicos eram escassos, mormente se comparados à admirada Hollywood em sua Era de Ouro, o que justificou o célebre lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. O filme não é uma reflexão somente sobre cinema, mas sobre a História e a cultura nacionais.
Revoltado com os abusos de seu patrão, Manuel o assassina durante uma briga. Temendo a perseguição, ele foge com Rosa, a sua esposa, unindo-se aos seguidores do padre Sebastião, um sacerdote cujo discurso de justiça social e redução das desigualdades é encarado como motivo para que ele seja calado a qualquer preço.
Dentro do que é conhecido como “estética da fome”, Glauber Rocha começa seu filme enfatizando a miséria e a seca da região, com animais mortos atacados por moscas, além de pessoas suadas e trabalhando sob o Sol escaldante. Na fotografia em preto e branco, os tons claros são os que prevalecem. Em meio aos cactos, o mundo comum de Manuel é apresentado como uma realidade cansativa, sufocante e sem expectativa de melhora se nada for feito. O incidente incitante, o assassinato do sr. Moraes, ocorre em uma cena que traduz a exploração patronal, com vantagens absurdas, aplicação de uma suposta lei própria nada igualitária e uma reação violenta, se preciso. Violência e miséria andam juntas.
Geraldo Del Rey faz com que, no embate com o patrão, a resposta de Manuel progrida para ser, justamente, uma resposta à altura. A exploração chegara ao fim. Depois do evento, o protagonista ingressa em uma etapa cujo foco é a religiosidade. Política e religião se fundem no cenário do cangaço: o padre Cícero e a Guerra de Canudos são exemplos dessa fusão histórica. O padre Sebastião (Lidio Silva) tem uma oratória combativa, prometendo a salvação religiosa: “quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus e quem é rico vai ficar pobre no inferno”. Com expressão triste e sofrida, seus seguidores ouvem que o culpado da situação em que estão não é o Sol, mas a distribuição desigual de renda. O cinema novo de Glauber Rocha é um manifesto, uma acusação muito bem fundamentada de que as mazelas do Brasil são resultado da indiferença daqueles que detêm o poder e o dinheiro para com o desnível desses fatores.
Em uma terceira etapa de sua trajetória, Manuel percebe que está em uma guerra na qual o Sol, Deus e o Diabo não são inimigos ou aliados reais, mas metafóricos. Há realmente dois lados na batalha e o cangaço se afigura como o melhor caminho para que sua vida melhore. Já não é mais o mesmo Manuel que, no começo, afirmou para Rosa (Yoná Magalhães) que “o tempo tá ruim, mas pode vir um milagre do céu”. Ela não tem a mesma fé, mas acompanha seu parceiro até o fim, inclusive submetendo-se a medidas extremas. Antes do padre Sebastião, a vida do casal já era de amargura e de suplício, a novidade é que depois Manuel ganhou consciência de que seu calvário não era resultado da álea. Já com Corisco o que ele aprende é o que pode fazer para tentar mudar tudo isso.
Othon Bastos encontra em Corisco a personificação do cangaço. Os fazendeiros concentravam renda e riqueza; os cangaceiros, não mais admitindo a precariedade em que viviam, estavam dispostos a lutar pela melhora (em lógica similar à da revolução proletária). Corisco não é alheio à religiosidade, pelo contrário, se diz “fechado com o Padim Ciço” tal qual Lampião, seu parceiro executado. O fuzil de Corisco não serve como uma arma qualquer, mas para “não deixar pobre morrer de fome”. A única morte que ele deseja é a do “gigante da maldade”, assassinado com a lança de São Jorge (ratificando sua fé). Tudo ganha um epíteto para Corisco (inclusive Manuel), exacerbando sua já épica batalha.
Com falas de efeito e um discurso enfático, Bastos é fascinante com uma atuação teatral que destoa dos demais, por exemplo, evitando contato visual, olhando eventualmente direto para a câmera e sendo filmado em primeiro plano. Essa dissonância enriquece a interpretação do ator, pois Corisco precisa ser diferente. Quando ele fala, seu cuspe precisa aparecer voando porque as palavras proferidas têm um conteúdo belicoso, de uma guerra que ele pretende continuar “até que o sertão vire mar e o mar vire sertão” – uma alegoria de extrema relevância para representar a busca pela inversão da abundância. Isso pode demorar o tempo que for, mas, como diz para sua esposa, ele precisa “vingar seu sofrimento fazendo justiça” – cena seguida de um spinning shot de um beijo que pode ser o último. Seu algoz, Antônio das Mortes (Maurício do Valle), está do lado do capital por conveniência circunstancial, não por convicção. Antônio admite que, se Corisco “tem parte” com o Diabo, tem também com Deus, revelando uma simpatia pela causa. Não se trata de maniqueísmo, mas de percepção.
A Terra do Sol é uma terra de conflitos cercados pela aridez e pela extrema pobreza. O lirismo das composições de Villa-Lobos traduz uma inquietante melancolia pelo radicalismo não do confronto proposto pelos cangaceiros, mas radicalismo da penúria. A trilha musical conta ainda com canções que exercem função narrativa expressa, diversificando os meios de evolução da trama (não apenas por diálogos ou cenas específicas) – exemplo da criatividade do cinema novo face à limitação de recursos. O calvário de Manuel é retratado em uma trajetória de ritmo cadenciado, mais calmo na maior parte do tempo, com acelerações (inclusive na montagem) nas cenas de ação. Não é possível correr na aridez do sertão se não for para salvar a própria vida. O governo e os donos de terra podem tentar calar Corisco e Manuel como fizeram com Lampião, porém, enquanto houver opressão, haverá outros para lutar pelo seu fim. Eis, de maneira absolutamente sucinta, a ideia na cabeça de Glauber Rocha. O que ele fez com a câmera na mão deve ser visto por todo e qualquer brasileiro.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.