“CARVÃO” – Tudo e todos viram carvão [46 MICSP]
Tudo começa com a desesperança. Diante dela, melhor abraçar a situação desfavorável sem hesitação, se jogar no incerto e assumir o risco. Os malefícios talvez sejam mais prováveis, mas os benefícios parecem concretos demais para rejeitar a proposta. É como se, no final, tudo e todos virassem (ou queimassem com) CARVÃO.
Em uma região rural, Irene e seu marido, Jairo, têm uma carvoaria no quintal de caso. Moram com eles seu filho, Jean, e o pai de Irene, Firmino, em estado de saúde que não o permite falar nem ouvir, tampouco sair da cama sozinho. A vida da família muda quando eles aceitam hospedar, mediante remuneração, Miguel, um estrangeiro misterioso.
Fernando Pessoa escreveu que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”, querendo dizer que viver é se arriscar e não se arrepender dos riscos aceitos. As personagens criadas por Carolina Markowicz provavelmente não pensam da mesma forma: depois de acolher um estranho na própria casa, a dinâmica familiar, que já não era boa, piora bastante em um preço muito alto a ser pago. Eles recebem dinheiro em troca, mas o estresse e as atitudes que precisam tomar vão muito além do que normalmente fariam.
De maneira ácida, Markowicz inicia seu longa questionando a fé ingênua das pessoas. Irene não entende por que Firmino está acamado em condição de extrema fragilidade, questionando o padre que, na verdade, não possui resposta. Maeve Jinkings utiliza uma expressão de insatisfação para deixar claro o seu inconformismo. De maneira irônica, a cineasta faz com que Irene cogite perante o padre uma contribuição financeira maior, no que o clérigo responde, empolgado, que seria bom porque a igreja estaria com dificuldade financeira. A ironia está no plano seguinte, no qual o enquadramento mostra uma igreja grande, pomposa, e bonita.
“Carvão” não se prende ao questionamento da fé, tampouco à crítica que menciona às instituições religiosas. Há um aprofundamento maior nas relações do núcleo familiar, que realmente pioram com a chegada de Miguel, mas não eram boas. Por algum motivo que não fica claro, Jairo (Rômulo Braga) não tem interesse na esposa, desenvolvendo um relacionamento extraconjugal que claramente não se reduz ao aspecto sexual (basta ver o presente que escolhe). Por outro lado, Irene guarda uma frustração por ser deixada de lado e o filme, de modo geralmente sutil, faz com que ela flerte com Miguel. Um perfume, uma fotografia, uma taça de vinho: tudo pode servir como ferramenta para a atração, até mesmo uma provocação ofensiva.
Miguel, por outro lado, não deseja nada que o cerca. César Bordón compõe a personagem com apatia e desgosto, de maneira que o choque de realidade lhe é indigesto. Antes de se mudar para a casa dos brasileiros, habitava uma residência grande, com piscina e uma bela vista; depois, a fotografia escurecida e os recintos pequenos geram-lhe uma sensação de desconforto sufocante. A cama é frágil, os itens de higiene não são os que está acostumado, nem todas as portas têm tranca… de maneira distinta, é verdade, ele ingressa na posição de aperto da própria família que o acolhe, seja em relação à casa (a cena da visita da enfermeira é filmada com enquadramento dentro da cama, ampliando a sensação de clausura), seja em relação à sua condição na casa (o encarceramento que lhe é imposto se torna cada vez mais revoltante).
Miguel não sente nada por Irene (por isso a fotografia que ela deixa em sua cama serve a um propósito distinto do que ela havia imaginado), mas cria um laço quase invisível com Jean (Jean de Almeida Costa), cujos efeitos são também invisíveis para os pais do garoto, ao menos no início. Irene e Jairo são irresponsáveis ao aceitar a possível influência de Miguel no filho, mas sua situação não lhes permitiu enxergar essa possibilidade.
A família vive com o constante perigo da descoberta de seu hóspede. A diretora cria com maestria uma atmosfera de suspense, por exemplo nas cenas em que um amigo de Jean o visita e na que Luciana quer dar parabéns para Firmino. A mesma habilidade, contudo, não é demonstrada na cena em que a carvoaria é utilizada para o propósito sugerido pela enfermeira – pessoa cujos propósitos, inclusive, são quase tão misteriosos quanto o backstory de Miguel (que se revela aos poucos, mas são presumíveis).
O final do longa é impactante mais de maneira simbólica do que narrativa, deixando claro que as escolhas de Irene e Jairo têm consequências. Essas consequências podem não ser enxergadas por eles ou podem ser negadas, mas existem. Irene tem razão ao afirmar para Luciana que, no futuro, ela e a amiga precisariam dos cuidados dos filhos assim como ocorre com Firmino. O que ela não afirma é que os laços familiares podem se deteriorar antes disso, queimando como se estimuladas por carvão.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.