“CARVÃO” [2] – Irônica sobrevivência brutal [24 F.Rio]
Em entrevista durante a passagem de CARVÃO por festivais internacionais, a diretora Carolina Markowicz declarou que seu filme foi rodado em Joanópolis, interior de São Paulo, local muito conhecido por ela. Esta familiaridade a teria feito conseguir observar a agitação de um ambiente bucólico e as contradições da natureza humana, transitando entre um tipo de humor áspero e ácido e as idiossincrasias estranhas da humanidade frente a desastres. A ideia faz parte da constituição de sua estreia em longas-metragens, que orbita em torno de acontecimentos trágicos e de uma perspectiva pessimista de futuro sob uma unidade estilística irônica e provocativa.
O interior do país serve de palco para personagens tentando sobreviver em um cenário hostil através de quaisquer meios possíveis e de uma postura sarcástica. Irene vive com o marido Jairo, o filho Jean e seu pai idoso e doente que não sai mais da cama, não fala nem ouve. Eles têm uma pequena carvoaria no quintal da casa, que serve de precária atividade de sustento da família. Por conta da situação econômica desfavorável, Irene recebe uma perigosa e rentável proposta: hospedar um homem desconhecido em sua moradia. Contudo, o acordo exige uma contrapartida arriscada da família, capaz de levá-la a correr sérios riscos na cidade e ter seu cotidiano desestabilizado.
Miguel é o homem desconhecido levado para viver com Irene, Jairo e Jean por intermédio da enfermeira que cuida do pai da protagonista. Em torno dele, a violência irrompe de maneira abrupta sem aviso ou preparação, o que cria o choque de evidenciar o quanto dois universos aparentemente tão opostos possuem a brutalidade como algo em comum. O sujeito de origem hispânica abandona sua vida original em busca de outra identidade para se proteger das ameaças que sua atividade criminosa gerava, tendo que levar adiante um plano sangrento que se desenrola surpreendendo o espectador. O mesmo acontece com a família principal, já que Irene e Jairo executam sua parte do acordo com uma crueldade maquiavélica incapaz de ser antecipada nos arcos dramáticos dos personagens. O próprio universo do interior é retratado visualmente como um ambiente carente, desigual e grosseiro que extrai das pessoas em questão um presente satisfatório e um futuro animador, por conter locações vazias e de recursos escassos. Carolina Markowicz filma esses momentos com planos de conjunto que registram a força dramática dos espaços sobre aquelas figuras.
Se a narrativa parece caminhar para uma abordagem mais violenta e visceral, a presença de Miguel em um mundo oposto ao seu reorienta a trama para as possibilidades irônicas de uma convivência inusitada. Enquanto esperava a conclusão do plano que o faria assumir outra identidade e viver em um lugar distante, o recém-chegado precisa se manter enclausurado na nova casa para não ser descoberto pelos vizinhos e interagir com a família interiorana. Este fato transformou a dinâmica familiar, mas sob um viés sarcástico que afeta a todos de modos diversos: Jean se aproxima do desconhecido como se fosse um novo amigo, a ponto de jogar bola com ele e conversar com algum comentário espirituoso impróprio para uma criança; Jairo e Irene veem seu relacionamento já em crise se abalar mais ainda, pois o marido ainda corre riscos para manter um caso extraconjugal e a esposa flerta com Miguel à procura de novas chances de se sentir desejada e valorizada. À medida que o tempo passa, as trajetórias de mãe, pai, filho e do sujeito hispânico continuam sofrendo reviravoltas imprevisíveis com tons cômicos.
Jean parece cada vez menos uma criança ingênua e não apenas por conta de sua falta de filtro para discernir o que poderia ou não dizer em uma conversa, mas também porque reproduz parte da vida criminosa de Miguel na escola (o que rende um comentário espirituoso e impensável da diretora). Jairo vê seu senso de autoridade familiar ser contestado pelo recém-chegado, não conseguindo nem preservar seu segredo. Irene se desdobra em situações que exigem manter o espanhol às escondidas em sua casa, apesar de quase ser descoberta pela vizinha Luciana em uma cena que se prolonga por um tempo convenientemente desconfortável. E Miguel se sente progressivamente desesperado a cada novo dia que precisa ficar confinado naquela casa sem previsão de quando poderá sair dali em direção a uma nova vida com outra identidade. É interessante que Carolina Markowicz encena o desenvolvimento dramático assumindo as contradições de uma decupagem crua sem tantas estilizações visuais ou sonoras que capta acontecimentos e conflitos brutais na chave do sarcasmo.
Analisando mais de perto, a narrativa utiliza alguns elementos com função alegórica, ainda que a direção não chame tanta atenção para suas aparições. Nessa área rural, a religião pode exercer papel central e servir de guia de orientação para os moradores. Porém, já no princípio, quando Irene questiona o padre local sobre os desígnios de Deus pensando no sofrimento pelo qual o pai dela passa, a religião aparece como mais um aspecto paradoxal na trama. Se os valores morais pregados pela Igreja Católica seriam tão bem definidos e seguidos pela população, por que as famílias do local agem pragmaticamente pensando no próprio sustento material? Este paradoxo se intensifica a cada nova sequência em que algum personagem está na igreja orando. Outro elemento recorrente é o trabalho de Irene para matar e desossar galinhas para as refeições, que, a princípio, pode soar como mais uma parte de um rotina simples e desgastante, mas que incorpora outras possibilidades conforme a convivência de todos os personagens atinge o auge de desconforto, tensão e embate.
Assim como ocorre no primeiro, o terceiro ato desenvolve de forma interessante o efeito surpresa da violência. Além de funcionar isoladamente, a última cena violenta reformula as impressões do público e o sentido geral do filme provocando reflexões que também mesclam ironia dramática e brutalidade dos fatos. Inicialmente, “Carvão” sugere que os conflitos centrais se movem a partir da exploração de Irene, Jairo e Jean por parte de Miguel, os três alvos das consequências desestabilizadoras disparadas pelo visitante. No entanto, o desfecho propõe uma reviravolta no olhar de toda a trama, que ajuda a remodelar a relação entre os personagens e as dimensões de perpetradores e vítimas. Esta ressignificação se revela irônica por apontar a conclusão para um lado e partir para outro rumo, além de ser brutal por denotar o sufocamento de algumas pessoas em um ambiente desolador. Nesse cenário, ações extremas podem acontecer em nome da sobrevivência a ponto de gerar efeitos mais complexos para as sequências de oração na igreja local, de desossa da galinha e de paralelismo entre as casas de Irene e Luciana.
*Filme assistido durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).
Um resultado de todos os filmes que já viu.