“OS ANOS DO SUPER 8” – As sensações daqueles anos [46 MICSP]
A filmagem da família Ernaux em OS ANOS DO SUPER 8 não é apenas um registro privado, mas uma colagem do núcleo familiar em cenários de locais distintos em épocas pretéritas. A mescla entre o pessoal e o contextual gera uma preciosa e singular obra na qual a distância para o espectador passa a inexistir e ele sente as mesmas sensações que as suas personagens.
O longa consiste em imagens de arquivo, filmadas em Super 8 entre 1972 e 1981, envolvendo a família Ernaux e os vários países nos quais residiram na época, registrando tanto a condição desses países quanto a de si mesma, do marido e dos filhos.
O documentário de Annie Ernaux e David Ernaux-Briot é caloroso como poucos filmes conseguem ser. Isso não é resultado das meras filmagens da família Ernaux, pois “Os anos do super 8” não é um mero filme familiar. É da combinação com a conjuntura em que se encontravam que resulta o seu brilho único, como se os filhos e a própria Ernaux (que são os que mais aparecem) fossem a faísca geradora do calor que a película alcança.
Filmada, evidentemente, em super 8, a obra tem as características da tecnologia da época, como o som da película, a razão de aspecto quadrada e a imagem granulada, o que concede ainda mais vividez à encantadora narração voice over de Annie Ernaux. Sua fala combina com o tom documental, porém o fato de consistir em seu ponto de vista imprime uma pessoalidade que reduz a distância entre os locais e a época, de um lado, e o público, de outro. De acordo com ela, a câmera era mais valiosa que o chuveiro ou a cama, uma fala eloquente para declarar a importância daqueles registros.
Os registros, por sua vez, transitam entre o pessoal e o político, acertadamente sem um aprofundamento que iria descaracterizar a proposta. Algumas vezes, as minúcias estão além do conhecimento, como no caso da Albânia, em que o regime totalitário colocava pessoas de fora em uma bolha impenetrável (nesse caso, de fato, pouco poderia ser dito). Outras, o conhecimento geral é suficiente para o impacto necessário, como em relação ao Chile. A narração de Ernaux não se preocupa em esmiuçar a política desses países e também não dá grandes explicações sobre os atritos familiares, mas essa lacuna não faz falta porque seu olhar sobre a época precisa ser horizontal. A intenção é uma revisitação afetuosa, o que não resulta em superficialidade porque a proposta, nesse sentido, é mais emotiva do que racional. É por isso que, por exemplo, ao traduzir graficamente a transição de governo no Chile, ao invés de explicar o ocorrido (que é de conhecimento geral), as imagens em movimento de crianças desnutridas recebendo leite do governo Allende são substituídas por fotografias estáticas e de pouca visibilidade, uma metáfora bastante sagaz do período Pinochet.
O filme é detalhista e contemplativo: detalhista quando, por exemplo, aparece a decoração das diversas residências (o que por si só é bastante representativo, dada a diversidade de locais); contemplativo quando, dentre outras cenas, Annie Ernaux filma um pôr do sol afirmando compreender a adoração solar como uma divindade. Em constante movimento, os Ernaux viajam por continentes distintos enquanto os anos se passam, deixando para o público a percepção dessa passagem ao destacar apenas alguns detalhes (o aprendizado da natação de um dos filhos, a fase adolescente dos meninos usando camisetas do Iron Maiden etc.).
Annie Ernaux funciona como narradora, roteirista, diretora, personagem e espectadora de sua obra, um enquadramento pouco usual no cinema. O compartilhamento da sua privacidade se torna uma dádiva valiosa na medida em que expõe não apenas a sua vida e a de sua família, mas o seu olhar sobre a sua vida, sobre a sua família e sobre a sua vivência durante alguns anos. Quando aparecem imagens de touradas em silêncio, nada precisa ser dito: a reprovação da conduta humana perante aqueles animais é gritante (inclusive pela música extradiegética colocada na cena), havendo um subtexto comparativo entre o terrorismo espanhol da cena anterior e as próprias touradas. Quando necessário, todavia, é verbalizado o lamento: a beleza interiorana francesa, inocente e quase intocada, sofreria efeitos deletérios não exibidos no filme (mas hoje de conhecimento notório) em razão do comportamento humano com a natureza.
Essa combinação entre o verbal e o não verbal é exemplo de como a aliança entre elementos diferentes é bem trabalhada no longa, da qual resultam as suas magníficas idiossincrasias. Este poderia ser um filme sobre política ou um filme sobre uma família, mas é muito mais do que um, do que o outro ou do que um filme que a soma dos dois. Annie Ernaux afirmou que seu escopo era “transmitir o gosto e a cor daqueles anos”. O que ela faz é transmitir o gosto, a cor, as emoções, o espírito, a racionalidade e incontáveis outras sensações daqueles anos.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.