“AS OITO MONTANHAS” – Apenas um grande filme [46 MICSP]
A lição principal de AS OITO MONTANHAS é que a vida só vai para frente. Pode parecer óbvio, mas o filme leva a pensar como funciona o fluxo da vida de qualquer pessoa, que pode se arrepender de decisões pretéritas, que, por sua vez, são relativamente irremediáveis. É possível reatar uma amizade, mas o tempo perdido jamais retorna. A melhor parte é que isso é apenas uma fração pequena de tudo o que o filme faz pensar. Aliás, o filme tem longa duração, é um filme grande, mas também é um grande filme.
Pietro é um garoto da cidade, Bruno é a última criança de uma vila esquecida em uma montanha. No verão de 1984, eles se conhecem e rapidamente se tornam amigos. Com o passar dos anos, enquanto Bruno permanece na montanha, Pietro viaja, mas retorna para revê-lo. Entre idas e vindas, ganhos e perdas, os anos se passam e os meninos amadurecem e seguem seus destinos.
Certamente o livro de Paolo Cognetti é ainda mais rico que o roteiro de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch conseguiu transpor para o cinema. Ainda assim, os cineastas, que também dirigem o longa, têm na obra um trabalho soberbo de sentimentos variados sobre a própria vida. Groeningen (pela primeira vez dividindo a direção com a estreante Vandermeersch) já tem na filmografia longas sensacionais como “Alabama Monroe” e “Querido menino” (clique aqui para ler a nossa crítica), deixando claro o seu interesse em contar histórias edificantes. No caso de “As oito montanhas”, trata-se de seu filme menos melancólico e por isso mesmo mais ordinário, mas ainda assim capaz de transitar entre sentimentos genuínos bastante distintos como alegria e inconformismo, empolgação e surpresa e riso e choro (e ainda assim sem ser piegas).
A narração voice over é geralmente um recurso de empobrecimento do roteiro, porém aqui serve para esmiuçar as elucubrações do protagonista, Pietro (Luca Marinelli, nada menos que ótimo). A despeito de a narrativa se iniciar na sua infância, sua narração representa um olhar em retrospectiva sobre a surpresa em ter encontrado alguém como Bruno (Alessandro Borghi, quase tão bom quanto Marinelli) em sua vida. Na infância, o que os uniu foi mais que a solidão de dois garotos sem irmãos e sem amigos, mas o acréscimo que alguém muito diferente pode representar. Bruno está acostumado a um ambiente rural e a trabalhos físicos (apesar da idade), Pietro sente o choque ao enxergar essa realidade e percebe no amigo alguém interessante com quem pode compartilhar bons momentos. Desde a infância o condicionamento físico de Bruno é melhor, o que permanece até a idade adulta inclusive na vocação laboral dos dois, pois Pietro tem perfil mais intelectual (é interessante perceber aqui como as atividades da infância moldam a pessoa para a idade adulta). Pietro é mais franzino, o que fica mais fácil de perceber na adolescência dos dois. Imageticamente, para contrapô-los, os diretores usam as cores do figurino: enquanto Pietro veste constantemente um tom avermelhado, Bruno usa tons terrosos.
Ainda no aspecto gráfico, a direção elabora belas rimas visuais entre as fases etárias dos dois, enaltecendo as mudanças: ao empurrar pedras (quando crianças, contam até três e comicamente não conseguem), ao dormir juntos (maior distância quando adultos) e ao pular no lago (mesmo o estilo das cuecas é distinto). A estética visual do longa é apuradíssima, com cenários montanhosos maravilhosos que variam entre o verde bucólico e o branco congelante e congelado – sua fotografia, por sinal, é indescritível. A direção é também esplendorosa nas sequências elípticas, quando a excelente trilha musical auxilia na aceleração da narrativa de modo orgânico e comovente. É divertido ver os pequenos Bruno e Pietro correndo e brincando na área pastoril, mas é tenso assistir, por exemplo, à cena em que Pietro discute com seu pai.
A relação dos dois com os respectivos pais é tratada de maneira distinta porque a importância deles na narrativa é diferente (Pietro é o protagonista claro). Contudo, em comum eles detectam uma vontade de serem diferentes dos genitores. “As oito montanhas” não é peremptório sobre a questão do sucesso pessoal, na medida em que contradiz a conclusão de Pietro de que Bruno teria “encontrado o seu rumo”. Sabiamente, o filme permite concluir que não existem caminhos corretos para a vida e que apenas o tempo é capaz de revelar se as escolhas foram ou não corretas. Nesse contexto, Bruno se afoga na própria teimosia, enquanto Pietro, em seu ritmo, acha a trilha para a satisfação pessoal. Chama a atenção que apenas Pietro consegue ressignificar a relação com o pai, Giovanni (Filippo Timi, muito bom no pouco tempo de tela que tem) ainda que Bruno tenha conseguido ficar mais próximo dele. A questão é que tudo isso são as circunstâncias inimagináveis, imprevisíveis e inafastáveis da vida de qualquer pessoa, que levam ao amadurecimento e a conduzem a ser quem é. Como qualquer um, Bruno e Pietro têm opções a seu dispor, podem acertar e errar, mas estão fadados a sofrer as consequências do que decidem. O que “As oito montanhas” expõe é apenas um exemplo de como isso pode funcionar na vida de alguém, com toda a sensibilidade e as paixões que apenas um grande filme consegue transmitir.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.