“FEBRE DO MEDITERRÂNEO” – Não tanto desalento quanto parece [46 MICSP]
A depressão é um assunto sério e delicado. Porém, isso não impede uma abordagem sarcástica e surpreendentemente política do tema, como a que é feita em FEBRE DO MEDITERRÂNEO.
Waleed mora com sua esposa e filhos e tem uma rotina repetitiva entre sessões de terapia que não têm ajudado e esforços malsucedidos de escrever um livro. Sua vida muda quando chega Jalal, seu novo vizinho. Jalal exerce atividades obscuras, o que chama a atenção de Waleed, surgindo uma amizade de interesses sinistros.
O roteiro da também diretora Maha Haj tem a habilidade de aliar a depressão de Waleed com o conflito entre Israel e Palestina. O assunto aparece inicialmente de maneira periférica, como na televisão e em uma das primeiras conversas entre o protagonista e seu vizinho, mas ganha importância quando o filho de Waleed é diagnosticado com a doença fictícia que dá nome à película. É o próprio Waleed que percebe o mal que o conflito pode fazer na psique de seu filho, sem perceber, todavia, que os efeitos danosos também estão presentes nele mesmo.
A depressão se torna, então, uma metáfora para a repercussão individual do conflito. Sem prejuízo da seriedade necessária para enfrentamento do tema, Haj emprega um humor ácido para aliviar a tensão, optando por não encará-lo de modo explícito. A abordagem se revela acertada em especial pelos ótimos desempenhos de Amer Hlehel e Ashraf Farah, dupla que demonstra ter bastante química, bom timing cômico e compreensão adequada de seus papéis. Waleed (Hlehel) é desanimado com a própria vida, se ocupando de afazeres domésticos, broncas nos filhos e reclamações com os demais familiares, ganhando algum brilho ao conhecer Jalal (Farah) não por afeição, mas por curiosidade. Jalal tem personalidade muito mais descontraída, todavia suas atividades revelam uma dissonância entre o que ele demonstra em público e o que faz sem que os outros vejam.
Não se trata de um filme sobre uma amizade improvável como “Intocáveis”, dado que Jalal não exerce função motivadora em Waleed. Ao final, a direção cria uma atmosfera lúgubre para deixar claro que “Febre do Mediterrâneo” não é um feel good movie. Mesmo a amizade criada pela dupla deixa uma sensação de que algo está errado – e está mesmo, pois existe um interesse oculto de um em relação ao outro. Haj conduz sua obra para um crescendo cujo clímax pode não surpreender, mas é desanimado em relação ao tema principal, como se o embate entre israelenses e palestinos não tivesse solução.
Apesar de Waleed se mostrar apático em relação a tudo e a todos, quando se trata dessa questão a energia aparentemente inexistente surge com vigor, como se percebe de seu comportamento na consulta médica e da maneira com que conversa com o filho sem repreendê-lo. Diversamente, enquanto Jalal não se mostra capaz de compreender os motivos que levaram Waleed a tal estado psicológico, ele mesmo tem alguma dose de fragilidade que esconde do amigo. Enxergado unidimensionalmente, isto é, sem considerar a questão política, o filme é em si mesmo depressivo e considera que todos têm seus problemas e razões para alguma dose de tristeza. Visualmente, o longa se utiliza da escada do prédio onde moram como metáfora visual para o emaranhado complexo no qual as pessoas se encontram: ainda que a dupla esteja a poucos metros de distância, a arquitetura do local onde se encontram é complexa e, de certo modo, os afasta do resto da sociedade.
Jalal pede para Waleed não julgá-lo pelo que faz, mas julga Waleed pelo que sente. A amizade entre eles não é doce, com episódios amargos; tudo indica que eles não deveriam ser amigos, seja pelos hábitos, seja pela personalidade. Por outro lado, eles conseguem compartilhar bons momentos juntos, como quando apreciam o talento (musical e de caça) um do outro. Talvez ali resida uma esperança de união. Talvez o filme não seja tão desalentado quanto parece.
* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.