“A MULHER REI” – Não apenas bom, mas necessário
Mais do que um filme (muito) bom, A MULHER REI é um filme necessário. Até seu lançamento, não houve no cinema (leia-se, cinema comercial) nenhum filme com a sua profundidade nos temas que aborda sem prejuízo do entretenimento. A necessidade que o longa envolve é tanto a exposição de um pretérito vergonhoso quanto a reflexão sobre um presente, no mínimo, distante do ideal.
No início do século XIX, um exército de mulheres, conhecido como Agojie, tinha a responsabilidade de proteger o reino de Daomé. Prestes a treinar uma nova geração, a General Nanisca se prepara para enfrentar um inimigo que almeja destruir o que ela vem construindo junto ao rei Ghezo.
Um primeiro pensamento que o filme provoca se refere ao conceito de inimigo. Os guerreiros de Oyó são colocados em batalha contra as Agojie, mas a inimizade nesse caso é fruto de ambição por poder de seus líderes, principalmente o general Oba Ade (Jimmy Odukoya). Nas relações de poder dentro de Daomé, Nanisca tem nas esposas do rei (uma, em especial) uma inimizade que pode lhe custar seu sonho de um reino próspero e humano. Os colonizadores certamente são inimigos, nesse caso, relativamente a todos os africanos, de modo que o roteiro de Dana Stevens e Maria Bello é verbal ao apontar os europeus e os norte-americanos como os sanguessugas que historicamente foram (e certamente a produção permite refletir sobre a maneira como ainda são). O importante é o estímulo à reflexão, não a correspondência plenamente fiel aos fatos históricos (afinal, não se trata de um documentário).
“A mulher rei” é uma ficção histórica que não faz concessões para aliviar o triste passado, mas também não vitimiza suas personagens. Nanisca, a Miganon (líder) das Agojie, tem um backstory trágico, porém isso não suaviza a sua representação enquanto força inabalável. A espetacular Viola Davis se apresenta com corpo musculoso e voz grave para viver Nanisca, todavia, mais do que isso, a atriz compreende e consegue transmitir a relevância de seu papel enquanto encarnação de uma guerreira. À frente de seu tempo, ela vira o rosto quando o rei faz uma piada machista e propõe a ele um governo humano. Inseguro, o rei Ghezo (John Boyega) parece indeciso com os conselhos de sua general, mas o respeito que ele nutre por ela é prova da sua importância naquela comunidade. Fora da tela, mulheres são desdenhadas, quando não agredidas, daí a importância das Agojie, em especial Nanisca.
Certamente o brilho é majoritário para a Nanisca, contudo algumas de suas comandadas recebem destaques pontuais, como a autoconfiante Izogie (Lashana Lynch, ótima) e o braço direito da Miganon, Amenza (Sheila Atim, discreta). Dentre as novatas, Nawi ganha doses de protagonismo na trama, pois é ela que permite que o espectador se familiarize com a lenda que baseia a narrativa. Junto dela, o público pode ver como é o treinamento e o cotidiano das guerreiras, de modo que a não limitação ao ponto de vista da general se torna ferramenta útil tanto intradiegética quanto extradiegeticamente. Sua intérprete, Thuso Mbedu, não impressiona nas cenas mais dramáticas, mas representa bem o perfil de Nawi: astuta, mas desrespeitosa; determinada, mas vulnerável a instintos primitivos.
A diretora Gina Prince-Bythewood apresenta ao público um filme apaixonado e com o esmero de mostrar alguns dos rituais e costumes africanos. Na trilha musical há muito batuque e a sonoridade dos gritos de guerra e das reuniões das Agojie cria uma atmosfera igualmente fidedigna. É possível se sentir na África explorada (e ainda assim bela e majestosa em sua natureza incomparável) e enxergar com empatia as mulheres que – por motivos muito bem explicados – eram obrigadas a se sujeitar a um senhor (escravocata ou marital) ou a se entregar a uma dura vida combativa. A cineasta é hábil nas cenas de ação, mas incomoda a ausência de sangue, incompatível com os golpes desferidos e, principalmente, com os ruídos de sangue.
É importante perceber que “A mulher rei” não quer ser maniqueísta: nem todos os homens são maus, sequer aqueles vindo da Europa, como comprova Malik (Jordan Bolger, uma escolha inadequada no elenco por suas origens reais). Através de Nanisca, a produção levanta em especial duas bandeiras. A primeira é sobre a concepção de feminilidade, que é distanciada daquilo a que é normalmente associada (relação afetiva com um homem, atuação em batalha etc.) e permite àquelas mulheres, naquele contexto (e a ideia é que sirva de inspiração para as mulheres reais de hoje), a emancipação que merecem. A segunda é sobre a escravização e o racismo; no primeiro caso, uma dívida histórica por ter causado um ciclo autofágico (a general foi a primeira a perceber que todos estavam perdendo), no segundo, um início de segregação e hierarquização racial. A melhor parte é que tudo isso está em um invólucro de filme de ação, o resultado é o que o cinema já há muito precisava.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.