“MAMÃE, MAMÃE, MAMÃE” – Amadurecimento não linear
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
MAMÃE, MAMÃE, MAMÃE é um exemplo de drama coming of age sob muitos níveis. Imediatamente, a noção de amadurecimento alcança as meninas de idades diferentes que partem para a adolescência. O desenvolvimento das personalidades também envolve os percalços de vidas que lidam com contradições intensas entre o poder da criação e os riscos da devastação. E a maturidade ainda compreende a predominância de mulheres na frente e atrás das câmeras como a afirmação da importância da representatividade de vozes diversas no cinema. Em comum, todos esses aspectos se fragmentam em eventos, histórias e sensações não lineares.
Em um dia de verão, um acontecimento trágico começa a desestabilizar a vida de uma família argentina: uma garota se afoga na piscina de casa e apenas é encontrada pela mãe tempos depois. A outra filha, Cleo, é deixada sozinha por algumas horas até sua tia e suas primas Nerina, Leoncia e Manuela chegarem. Todas as jovens vivem seu próprio microcosmo particular repleto de questões do mundo feminino da infância e do início da adolescência, convivendo também com perdas inesperadas e precoces.
A primeira fragmentação que se pode perceber é na forma cinematográfica. A estrutura narrativa não linear se faz presente desde as primeiras cenas, flexibilizando a progressão dos fatos do roteiro e indicando rapidamente o estilo de contar a história. A dramaturgia básica em torno do afogamento de Erín, da tristeza absoluta de sua mãe, da desorientação de Cleo após a perda da irmã e da chegada da tia e das primas não é desenvolvida através da relação convencional de causa e consequência. Ao invés de se basear no modelo narrativo clássico, a diretora Sol Berruezo Pichon-Riviére trabalha um cinema de sensações que movimenta a trama a partir de uma atmosfera lúdica e desoladora. Sendo assim, a sucessão de acontecimento é fluida e quase etérea, ao mesmo tempo que o vazio existencial da protagonista toma conta da ambientação geral da obra. A cineasta cria esses efeitos com o uso de elipses ou lacunas temporais e de posicionamentos de câmera que deixam de enquadrar todo o espaço cênico e as ações das personagens.
Fragmentar a forma narrativa está em sintonia direta com os elementos dramático do roteiro. A principal questão temática gira em torno do contraste entre vivenciar o luto na puberdade, teoricamente o período de florescimento de hormônios para uma vida plena de possibilidades para o futuro. Por isso, o protagonismo está em Cleo, uma menina que ainda precisa aprender a lidar com a morte em sua família sem ter o apoio da mãe, já que esta mal consegue reunir forças para levantar da cama. Desse modo, a protagonista convive muito mais com a tia e com as primas, apesar de também demonstrar fisicamente o sofrimento pela perda de Erín ao não sentir fome em certo dia e vomitar à noite. Como boa parte das sequências traz momentos cotidianos em que as garotas estão juntas, o ponto de vista narrativo se concentra nessas personagens a partir de enquadramentos baixos na altura de seus olhos e de situações naturais da idade (por exemplo, o primeiro beijo e a primeira menstruação).
Se o processo de amadurecimento das jovens é entrecortado por momentos melancólicos de perdas e afastamentos, Sol Berruezo trabalha alguns símbolos que aproximam desejos por vida e irrupções de morte. Isoladamente, uma piscina, um óculos de mergulho e um adesivo de cavalo colado em um ventilador podem parecer referências à vitalidade da juventude, seja por remeterem a um passatempo divertido, seja por traduzirem o componente lúdico do universo infantil. Entretanto, filmar a piscina ao longe e rodeada por uma cerca de proteção, mostrar os óculos de mergulho esquecido no fundo da piscina e direcionar a câmera para o adesivo em um ventilador deixado em um quarto vazio lembram constantemente a falta que uma criança faz naquele ambiente. Os símbolos são tão expressivos que deixam a sensação de que os flashbacks mostrando Cleo e Erín juntas são menos poderosos, pois construções literais contradizem uma unidade estilística mais atmosférica e implícita.
O paradoxo que se cria entre os flashbacks mais diretos e as sutilezas do restante da narrativa pode até ser frágil, mas outras contradições funcionam na não linearidade do coming of age. De um lado, o amadurecimento revela que há uma vida toda pela frente na trajetória daquelas meninas, por outro, o mesmo crescimento expõe que as dificuldades podem dolorosas e trágicas. Então, o esplendor da vida pode estar na inocente cena em que Cleo e Manuela treinam beijos em tomates, Nerina ajuda Cleo na primeira menstruação da garota mais jovem, Leoncia comemora seu aniversário e todas as meninas acariciam um coelho. As passagens de maior inocência que apontam para o futuro se encontram com situações que evidenciam violência, sofrimento ou morte, como se nota na explicação de Nerina para a menstruação envolver bebês mortos, no fato de a fatia do bolo de aniversário para a mãe de Cleo apodrecer em um canto no jardim e nas brincadeiras com o coelho serem acompanhadas de conversas sobre rapto de crianças.
Há idas e vindas em uma narrativa fragmentada, em trajetórias de personagens atravessadas por indicações de uma vida longa pela frente e alertas sobre a proximidade do fim e também evocações de uma história do cinema contraditória. Levando-se em consideração que mulheres tiveram importância considerável na constituição da sétima arte desde suas origens (Alice Guy-Blaché, Maya Deren…), porém foram invisibilizadas ao longo de muito tempo até serem resgatadas mais recentemente, uma produção como esta tem valor significativo. Isso porque o elenco é composto majoritariamente por atrizes (Agustina Milstein, Camila Zolezzi, Chloé Cherchyk, Vera Fogwill, Matilde Creimer…) e a equipe técnica é formada por realizadoras (Sol Berruezo, Rebeca Siqueira, Carmela Morales, Lola Cafardo, Mariana Jara…). A presença marcante de mulheres em várias funções reforça o quão importante é diversificar os olhares e sensibilidades artísticas, principalmente quando se trata de um filme que depende tanto da representação do luto e do amadurecimento por uma perspectiva feminina.
Esta perspectiva também é juvenil por boa parte do tempo, afinal a mãe de Cleo se mantém reclusa no quarto e a tia parece não pertencer ao mesmo mundo das meninas ao não ser captada totalmente pela câmera. O distanciamento entre crianças e mulheres adultas proporciona sequências expressivas, como o paralelo entre um banho de banheira e o afogamento, a oração das meninas após a menstruação e saída desesperada da mãe da protagonista para o jardim enquanto uma vizinha atira bichos de pelúcia para o outro lado do muro. Seria de se esperar que esse afastamento geracional fosse mais um aspecto complicador para os processos de luto e de amadurecimento das jovens, ampliado na sequência no bosque no terceiro ato. Porém, a sensação de que uma tragédia seria iminente se transforma em um belo momento de geração de vida, que possibilita uma reconexão entre mães, filhas, tias e sobrinhas. Em pouco mais de aproximadamente uma hora, “Mamãe, mamãe, mamãe” também consegue por meios não lineares fazer o espectador se conectar com aquelas personagens.
Um resultado de todos os filmes que já viu.