“ERA UMA VEZ UM GÊNIO” – O real e o surreal, juntos
O mero fato de ERA UMA VEZ UM GÊNIO ser uma narrativa sobre e composta de narrativas já seria suficiente para estimular reflexões. Contudo, o filme vai além, divagando sobre questões materiais e imateriais e colocando em xeque a contraposição entre o real e o imaginário. Tudo dentro de um invólucro de fábula, quase pueril, que no mínimo encanta pelo seu ar clássico.
Enquanto participava de uma conferência em Istambul, a dra. Alithea Binnie encontra um “djinn” (gênio), que lhe concede três desejos em troca da sua liberdade. Além de questionar se o gênio é um ser real, enquanto estudiosa de narrativas e mitologia, ela desconfia que a proposta é uma armadilha, pois todas as histórias similares têm final ruim para quem faz os desejos. Para convencê-la, o gênio conta episódios do seu passado.
A metalinguagem do filme está presente na estrutura do script, mas também por detalhes, como a menção a um quarto em que Agatha Christie teria se hospedado. A base na qual o roteiro escrito pelo diretor George Miller e Augusta Gore (a partir do conto de A. S. Byatt) é a dicotomia entre ciência e fantasia, havendo até mesmo a afirmação, por parte da protagonista, de que “as narrativas científicas farão das mitológicas, metáforas”. Inicialmente, o longa enaltece a obsolescência das lendas, pertencentes ao pretérito, face à ciência, pertencente ao presente e ao futuro. A própria noção de verdade é ressignificada na medida em que o surreal explicava o que o real não conseguia, sendo substituído por este em razão dos avanços científicos. No início, é declarado que as histórias imaginadas eram o que dava coerência à existência humana antes de a ciência o fazer.
Inteligentemente, o filme não se prende à metalinguagem, tampouco à dicotomia. Ainda que, verbalmente, muito seja dito sobre o significado das narrativas, ele não se furta a desenvolver uma narrativa própria, composta por narrativas menores, relativamente independentes. É quando a incrível dupla principal – a acadêmica interpretada pela sempre excelente Tilda Swinton e o gênio vivido por um ótimo Idris Elba – descreve um ao outro suas experiências pessoais. Os flashbacks surgem com estilo marcante (narração voice over, filtro dourado, uso módico de animação) e dão dinamicidade à trama principal (inclusive com amparo em lendas clássicas, como as da magnética Rainha de Sabá e do libertino sultão Ibrahim). Por outro lado, o saldo de uma produção composta por micronarrativas relacionadas à narrativa principal pode ser um pouco cansativo, dado que há vários inícios e vários desfechos dos episódios compartilhados pela dupla (cansaço que não existiria se a obra fosse uma antologia sem narrativa principal).
Com uma direção impecável, Miller entrega um filme com visual colorido e CGI de boa qualidade, principalmente considerando a atmosfera fantástica assumida desde o início. Dirigindo-se ao espectador, Alithea diz que é mais provável que ele acredite em sua história se ela for contada como um conto de fadas, e é justamente isso que ela elabora a partir de então. Enquanto tal, o roteiro cria diálogos que passeiam pelo concreto e pelo abstrato. Naquele, no terço final há uma crítica à dependência humana à tecnologia (a questão dos campos eletromagnéticos); neste, o filme se debruça sobre o amor (ao perceber que é um sentimento irracional, insuscetível de prova e espontâneo). Há provocações sobre a fé oportunista, relativa às pessoas que dirigem suas crenças pelas necessidades do momento (o desespero do gênio após aprisionado). Se é poético o aprendizado que as histórias fornecem a Alithea (seu estudo fez com que aprendesse sobre sentimentos, de certo modo, foi o que lhe deu humanidade), é uma metáfora áspera a do encarceramento (os altos e baixos da vida do gênio após enclausurado).
Sem considerar os atributos técnicos – como a preciosa montagem, com transições por associação (por exemplo, a que ocorre entre a roda do avião e a do carrinho no aeroporto), os planos-sequência, o simbolismo do figurino escarlate (que Alithea passa a adotar, mas que antes era exclusivo do gênio) e a caracterização imagética do gênio (orelhas pontudas, dedos dourados…) -, “Era uma vez um gênio” não quer fornecer respostas, mas apresentar questionamentos sagazes sobre temas bem variados. No fundo, sua estrutura é bastante clássica, quiçá dogmática, o que pode decepcionar a plateia que deseja algo mais subversivo. Entretanto, suas elucubrações sobre os mais diversos temas são valiosas, esclarecendo que não é possível ficar com apenas um lado das dicotomias (real e imaginário, material e imaterial etc.).
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.