“BOA SORTE, LEO GRANDE” – Uma troca maior do que sexo por dinheiro
Qualquer relacionamento (saudável) envolve uma (ou mais) troca(s). De uma troca de afeto a uma troca de favores, de uma troca financeira a uma troca de experiências, se relacionar é trocar. Entretanto, algumas trocas sofrem reprovação social, geralmente por parcelas conservadoras da sociedade. É o exemplo representado em BOA SORTE, LEO GRANDE, cuja intenção é naturalizar essas trocas e mostrar que elas deviam ser estimuladas, não reprovadas.
Aos cinquenta e cinco anos e tendo se tornado viúva há pouco tempo após um longo casamento, Nancy Strokes contrata Leo Grande para lhe dar prazer. Leo é profissional do sexo e está disposto a fornecer os serviços buscados por Nancy, mas as experiências compartilhadas por eles valem mais que o dinheiro e o sexo envolvidos no acordo.
Como é de se esperar, as personagens criadas pelo roteiro de Katy Brand são absolutamente distintas. Há mais que uma diferença de gênero, de experiências de vida e de idade entre Leo e Nancy, eles têm personalidades visivelmente antagônicas. Enquanto ela tem pressa para “acabar logo com isso” – sua escolha de palavras resulta em vários constrangimentos -, ele demonstra calma e interesse em conversar antes da prática sexual. É verdade que Leo não é completamente sincero no que expõe para ela, pois o jeito cavalheiresco (beijo na bochecha, elogio ao perfume etc.) e a disposição em conhecê-la compõem uma personagem que ele cria para satisfazer a fantasia de quem o contrata. Antes de ser um profissional do sexo, Leo é um ator, alguém que declara estar pronto para ser o que ela quiser. No entanto, existem brechas através das quais Nancy enxerga além do ator, como no vocabulário que demonstra conteúdo e nos raros deslizes que ele comete ao sair do papel (por exemplo, quando admite que nunca houve “clima” no encontro).
A bem da verdade, Nancy não sabe muito bem o que quer, parecendo prestes a desistir da empreitada que propôs a si mesma. Nesse vazio, ela busca retirar a máscara usada por Leo, fazendo perguntas sobre sua família e suas experiências. O desconforto do rapaz em falar do histórico familiar é visível e transmitido para o espectador quanto mais ela insiste no assunto. Em relação às experiências, é uma oportunidade muito boa para o (e bem aproveitada pelo) roteiro para desmistificar a profissão sexual. Quando Nancy afirma ser grosseiro falar de maneira aberta sobre o dinheiro envolvido no negócio, é importante a resposta de Leo, segundo quem não há nada errado em pagar por um serviço contratado. A visão dele é enriquecida na narrativa quando ele compartilha episódios de sua profissão que ela claramente jamais imaginou. Leo é procurado para dar prazer, mas tem consciência que a sensação pode ser obtida por muitas formas além da relação sexual. O problema aqui é que, por tudo que ela viveu, a concupiscência é um mal a ser evitado. Nancy se alienou em uma bolha, criada por ela mesma, em que o gozo é, literal e metaforicamente, digno de censura. O resultado não poderia ser outro: a bolha estourou. Porém, a dificuldade em aceitar a vontade de gozar permanece em sua mente, combinando com seu perfil inseguro (“o que meu filho pensaria de mim?”), cartesiano (tomar “apenas decisões racionais) e acidentalmente sincero (admitindo que o filho é entediante).
Em ótimo desempenho, Emma Thompson se despe (literal e metaforicamente, mais uma vez) dos pudores fortemente presentes em Nancy e geralmente associados ao gênero e à idade. Daryl McCormack não tem a habilidade de Thompson, mas compreende bem que Leo é um homem bonito que pode oferecer a Nancy mais do que seu corpo. A atmosfera intimista criada pela diretora Sophie Hyde aproxima os dois e cria uma cerca por força da qual o que eles são fora do quarto se torna bem menos interessante do que os minutos vividos dentro dele – transando, dançando ou mesmo conversando.
É difícil traduzir um roteiro teatral como o de Brand para a linguagem cinematográfica, algo que a cineasta faz muito bem. Há uma queda de ritmo no terço final, mas os recursos do cinema são bem empregados para ampliar a proposta. A diretora faz o básico para contrapor a dupla principal: Leo surge pacato em um café, Nancy aparece ansiosa em um quarto de hotel; ele tira o casaco ao entrar no quarto, ela não tira o blazer; ela repete o uso de estampas florais no vestuário, ele prefere roupas lisas ou listradas. Contudo, existem aspectos que exploram mais do que essa camada, como o uso dos cenários e dos reflexos. No primeiro caso, apesar de a imensa maioria das cenas ocorrerem no quarto de hotel, os enquadramentos simulam uma pluralidade na composição estética (com restrição do cenário amplo para setores menores, como o banheiro, a janela, o espelho, o sofá, a cama etc.), como se fossem vários locais ao invés de um só. No segundo, o olhar que Nancy desfere para si mesma no espelho é de vergonha, ao passo que o que Leo vê em superfícies espelhadas é satisfação com o próprio visual.
“Boa sorte, Leo Grande” poderia recair na unidimensionalidade, limitando-se à síndrome de Édipo ou à crítica à toxicidade do pudor moralista. Leo realmente enxerga em Nancy uma mãe cujo olhar pode dar indicativos sobre sua própria genitora, enquanto ela sente por ele uma empatia maternal; Nancy aos poucos percebe que sua atitude pudica é deletéria a si mesma, o que Leo procura demonstrar. Nas entrelinhas, todavia, o filme vai além, adentrando em etarismo, autoestima baixa, questões de gênero, relacionamentos familiares e os danos de uma sociedade cujo medievalismo pode minar a felicidade. A troca entre Nancy e Leo acaba valendo muito mais que os prazeres carnais e mais do que o dinheiro pode pagar.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.