“DIÁRIOS DE OTSOGA” – Retrato de um tempo congelado
Desde a irrupção da pandemia do COVID-19 em 2020, o cinema foi afetado de diversas maneiras. Salas de exibição foram fechadas, profissionais lidaram com dificuldades econômicas por conta das restrições do trabalho e produções audiovisuais por todo o mundo foram interrompidas. Além disso, uma estética própria começou a ser definida por alguns filmes, ou seja, uma estética do confinamento representada diretamente pela crise sanitária ou por outras dinâmicas narrativas. DIÁRIOS DE OTSOGA é um dos exemplos de como o cinema incorporou os impactos do isolamento social na arte, embora a metalinguagem inserida tenha mais valor formal do que sensorial no espectador.
O confinamento em questão envolve os amigos Crista, Carloto e João, que se encontram em uma grande propriedade cercada pela natureza. Eles dividem as tarefas domésticas e trabalham na construção de um borboletário no jardim. Nenhum deles deixa o local por muito tempo e, aparentemente, não têm contato com o mundo exterior. Os dias passam e a impressão de que estariam sozinhos na residência se desfaz de modo inesperado com a presença expressiva de muitas pessoas ao redor do trio de amigos.
Logo na abertura, a convivência dos três jovens e a ocupação da residência parecem emanar uma aura de artificialidade ou misticismo como se estivessem em um universo semelhante ao nosso, mas transcendental ou místico. Crista, Carloto e João aparecem dançando e cantando na sala de estar em uma espécie de festa particular que organizaram. As luzes do ambiente mudam constantemente, ainda que se mantenham intensas com cores primárias e filtros próximos aos de uma boate. Quando os eventos nessa sequência se desenrolam, a transcendentalidade se impõe ainda mais, já que uma troca de beijos é observada ao longe sob sombras que insinuam a possibilidade de que a cena seria fruto da imaginação de um deles. No decorrer da obra, outros elementos reforçam a sensação de que a propriedade e os personagens pertencessem a uma dimensão temporal especial.
Tais elementos são a estrutura narrativa e a repetição de determinados diálogos. Os diretores Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes desenvolvem a trama a partir da indicação explícita da passagem dos dias – informando na tela a numeração dos dias conforme avançam -, porém recuando no tempo desde o dia 22 até as datas anteriores. Essa escolha remete às próprias experiências dos protagonistas, evocadas no título do filme, que mostra tratar o diário do seu cotidiano. Por mais que outras produções já tenham adotado construção semelhante, a recusa por uma linearidade convencional cria um mundo particular no qual as relações de causa e efeito não são tão conhecidas e o tempo opera segundo uma lógica distinta quase congelada em um ciclo fechado em si mesmo. Já nas conversas entre os amigos antes do dia da festa, surge o assunto de como as festividades podem ser momentos desconfortáveis porque ninguém se escuta e algumas pessoas podem não ter paciência umas com as outras. A questão é quem fala essas frases, pois, em dado instante, é Carloto e em outro é João, deixando o público em dúvida sobre quem realmente se considera tímido ou se o confinamento afeta as percepções de todos.
À medida que o tempo narrativo regride, é possível acompanhar as especulações sobre a festa e o surgimento gradual do borboletário. Em todas as sequências, o estilo de decupagem segue a mesma ideia governante: deixar a câmera em uma posição contemplativa com planos conjuntos que observam os personagens em tarefas prosaicas e integram natureza e indivíduos. Entretanto, ainda faltava uma informação importante para compor o quadro geral: Crista, Carloto e João eram personagens de um filme produzido por Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes, ou seja, a produção escancara o fazer fílmico e a instância ficcional ao mostrar a equipe de filmagem e os aparelhos mobilizados para contar a história daqueles três jovens em uma propriedade isolada. É particularmente interessante a cena em que os técnicos e os cineastas são introduzidos, separando os atores e os demais profissionais na mesa do café da manhã. Assim, tudo que se viu até então é redimensionado e ressignificado, inclusive a noção de diário, uma vez que também relata o período de filmagem e o contexto da pandemia.
Especialmente no que se refere ao princípio dramático da contemplação espontânea de atitudes banais, a narrativa busca transitar pela sensação de naturalidade e pelas doses ocasionais de controle. Ao mesmo tempo que os atores são incentivados a improvisar e o roteiro estimula uma criação livre das cenas, os protocolos sanitários de prevenção à contaminação pelo coranavírus são incontornáveis (algo que não se reflete apenas no uso de máscaras em muitos momentos e na delimitação das regras, mas também na sequência em que decidem o que fazer com relação à “fuga” de Carloto para surfar) e a indicação das instruções para as filmagens são passadas pelos diretores e pela roteirista Mariana Ricardo. Por vezes, criam-se conflitos entre a proposta heterodoxa dos realizadores e as expectativas dos atores, como no diálogo conturbado entre eles a respeito do desenvolvimento do trabalho, e explicações para cada reconstrução de cena vista até ali, como no caso em que Carloto e Crista passeiam pelo jardim.
Se a introdução da metalinguagem e da autoconsciência cinematográfica tem méritos formais e se enquadra organicamente, seu desenvolvimento tem menos a dizer e a gerar em termos dramáticos ou sensoriais. É como se Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes tivessem dificuldades de definir os rumos que poderiam dar ao uso dessa escolha estilística, causando assim um descompasso na ideia de caracterizar os personagens a partir da observação de suas ações e não através da exposição completa de suas trajetórias de vida. Mesmo que as abordagens ficcional e documental se encontrem na forma como atores e personagens se fundem (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro vivem versões de si mesmos) e realizadores se tornam personagens de seu próprio filme, não há muito a saber sobre eles. Ao invés de conseguir desenvolver essas figuras através da contemplação da vida prática, a narrativa expõe de forma trivial o processo de filmagem chegando inclusive a verbalizar explicitamente a escolha por uma cronologia inversa e seus impactos.
“Diários de Otsoga” redireciona a estética do confinamento para um lugar quase de reflexão sobre o período de isolamento social forçado imposto pela pandemia do COVID-19, algo semelhante ao que “Seguindo todos os protocolos” fez pensando no modo como a crise sanitária impactou todo o mundo. Não se trata, portanto, de apenas comentar a existência do confinamento ou de representá-lo alegoricamente, mas de olhá-lo com certo distanciamento após dois anos de vigência e a retomada de um “novo normal”. Esse período provocou profundas alterações na experiência de sentir o tempo e o espaço, praticamente como se algo muito irreal próprio da ficção tivesse invadido a vida real. E o filme português trabalha tais questões pelo viés formal (a observação das cenas filmadas a partir da perspectiva de quem está atrás das câmeras e a metáfora de uma fruta estragada voltando no tempo até sua fase madura), deixando de lado o impacto emocional que nunca se efetiva propriamente. Então, o tempo na propriedade se congela em uma frieza distanciada.
Um resultado de todos os filmes que já viu.