“TUDO EM TODO O LUGAR AO MESMO TEMPO” – Multiverso da loucura
“Doutor Estranho no multiverso da loucura” (clique aqui para ler a nossa crítica) gerou discussões sobre as possibilidades de autoria dentro de um grande estúdio sob a égide da indústria cultural. Em certas leituras, Sam Raimi conseguiu criar uma estética de terror em uma história de super-herói, já em outras, o diretor foi apenas capaz de inserir pontualmente elementos autorais enquanto era absorvido e domesticado pelo sistema industrial hollywoodiano. Tendo em vista esse debate, TUDO EM TODO O LUGAR AO MESMO TEMPO parece mais livre em sua construção visual e narrativa sem sujeitar seu próprio multiverso às regras de referências e fórmulas prontas que poderiam conter a criatividade dos realizadores.
Em uma trama formada por tantos universos, o primeiro mostra a imigrante chinesa Evelyn trabalhando em uma lavanderia com o marido Waymond. No dia em que precisa lidar com difíceis obrigações profissionais e questões familiares espinhosas com Waymons, o pai Gong Gong e a filha Joy, ela ainda mergulha em uma aventura incomum. Evelyn precisa salvar o mundo, explorando outras vidas que poderia ter tido em outros universos. A missão se complica quando fica presa em uma infinidade de possibilidades sem voltar para sua casa.
A primeira realidade não tem traços fantásticos evidentes: a protagonista se desdobra entre atender os clientes na lavanderia, deixar o estabelecimento em dia com os impostos, receber o pai em sua residência, preparar uma festa para a comunidade local e tentar manter boas relações com o marido e a filha. A partir daí, os conflitos são colocados de maneira explícita ou indireta, como a situação de imigrantes chineses nos EUA (dificuldades financeiras ou de comunicação), as cobranças excessivas do pai, a decisão de Waymons pelo divórcio e os desentendimentos com Joy por conta da namorada da filha. Se ainda não há algo propriamente fantasioso, os diretores Daniel Scheinert e Daniel Kwan encenam os primeiros momentos com uma mise-en-scène conscientemente caótica e acelerada – mesmo não tendo planos-sequência, a decupagem faz Evelyn não conseguir descansar um segundo sequer porque é atirada de um núcleo conflituoso a outro sem interrupção.
Quando Evelyn vai a uma reunião crucial para resolver os problemas fiscais com a auditora Deirdre, a existência de outros universos começa a se revelar. Público e protagonista se veem aturdidos com a aparição de outra versão de Waymond, que passa comandos enigmáticos para a mulher com o objetivo de se comunicar com ela e explicar como salvar o mundo de uma ameaça poderosa. O primeiro contato de Evelyn com dimensões paralelas não é algo pacífico ou estável, sendo muito mais uma série de colisões entre universos que a deixam desorientada. Nesse ponto, a dupla trata a descoberta de múltiplas realidades sob o recorte da comédia, pois os acontecimentos de um universo invadem o outro a partir da mente da personagem principal sem serem percebidos pelos demais. Um símbolo recorrente da colisão de realidades é um vidro quebrado com lados de características distintas, inicialmente como um espelho literal e posteriormente como um recurso visual da jornada de Evelyn.
Conforme a narrativa se abre cada vez mais para a ideia de multiverso, as diferenças no uso do conceito em comparação com “Doutor Estranho” se acentuam. Se o filme da Marvel busca combinar ação e terror para tornar a experiência descompromissada e fora de uma lógica realista, mas ainda se enquadra na fórmula autorreferencial do estúdio, o filme da A24 tenta levar um pouco além a noção de fantasia e a mistura de gêneros cinematográficos. A chegada do primeiro universo paralelo traz junto a ficção científica e a ação, não se preocupando se a mitologia diegética é completamente explicada ou se tem furos de roteiro. Na verdade, as ideias de viagens entre universos, a transferência de poderes e da vilã Jobu Tupaki abraçam uma absurdez orgulhosa de si, como se pode ver na necessidade de fazer ações estranhas para saltar de uma realidade a outra (comer batom ou enfiar objetos nas nádegas) e na movimentação do corpo ou no manuseio de armas de uma versão de Waymons na luta contra policiais.
Outro aspecto que distingue o trabalho de Daniel Scheinert e Daniel Kwan daquele feito por Sam Raimi é a construção estética dos universos. À medida que Evelyn aprende as regras e aceita o papel de confrontar Jobu Tupaki para salvar o mundo, o tom de absurdo se amplia para dar conta de uma liberdade criativa que vai na direção do imprevisível e do extravagante. Evelyn, Waymond, Joy, Gong Gong e Deirdre encarnam versões muito específicas em cada nova dimensão. A primeira sequência de luta corporal da vilã é encenada com golpes e mortes que contêm o uso de fantasias coloridas, a explosão de purpurinas e o manuseio de pênis de borracha como arma. Nas demais cenas de ação ou de trânsito entre as realidades paralelas, este princípio é realçado procurando sempre imagens e atitudes nada realistas. E a própria natureza de cada universo se afasta do realismo ou de uma materialidade comum, pois há aqueles em que Evelyn é uma atriz de filmes de artes marciais, as pessoas tem salsichas no lugar das mãos ou são bonecos de pano e as imagens são traços de um desenho infantil.
Se forem observadas as atuações do elenco central, as composições dos personagens também seguem uma proposta mais exagerada quase farsesca ou em constante transformação. Em meio a tantas facetas que recobrem Evelyn, Michelle Yeoh transita entre posturas mais confusas de total incompreensão do que acontecia até aquelas seguras de si que se assumiam como uma heroína digna de filme de ação. Já os familiares da protagonista sempre se transformam dentro de um tom mais cômico, mesmo quando são vilões ou têm atitudes vilanescas, até começarem a representar indiretamente os conflitos dramáticos de cada personagem. Stephanie Hsu vive Joy como uma jovem descontente com a relação com a mãe e Jobu Tupaki como uma vilã decidida a derrubar certezas sobre o propósito da vida; Ke Huy Quan interpreta Waymond como alguém que precisa provar seu valor independentemente da versão em questão; e James Hong confere a todos os Gong Gong uma personalidade controladora que frustra os desejos da filha.
O desprendimento dos diretores a ponto de não impor filtros à imaginação ou ao caos inventivo de suas escolhas aumenta de escala com o passar do tempo. A produção se aproxima do clímax e, no percurso, o fantástico e o extraordinário se aprofundam, arriscando-se a parecer insano demais ou apelativo e, assim, perder o espectador em um turbilhão nonsense de acontecimentos, reviravoltas e embates. A passagem de um universo para outro atinge uma velocidade ainda maior com transições ousadas ou abruptas, assim como as próprias dimensões paralelas ganham caracterizações insólitas, como o tempo das cavernas em que duas personagens se tornam pedras ou uma era contemporânea na qual um guaxinim controle um cozinheiro durante seu trabalho em um restaurante. Observado mais de próximo, o clímax evidencia conflitos que podem não ser tão originais e, em certo sentido, até bregas sob a forma de uma dramaturgia que lida com temas como brigas familiares, reconciliação emocional, oposição entre propósito e aleatoriedade da vida e valorização dos momentos prosaicos da existência. Mesmo assim, “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” tem como mérito valorizar a forma de contar a história mais do que a história em si, tendo multiversos criativamente mais loucos do que filmes que trazem isso no título.
Um resultado de todos os filmes que já viu.