“DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA” – Espelhamento das realidades
Uma rápida observação em ambientes cinéfilos ou na crítica cinematográfica e em certos nichos das redes sociais permite apreender um contraponto à euforia de públicos, fãs e críticos diante de produções da Marvel Studios. As histórias de super-heróis do estúdio já foram criticadas como parque de diversões por diretores como Martin Scorsese, como filmes de bonecos por alguns críticos e como repetições padronizadas de uma fórmula cansativa. Em um cenário que pode anunciar um esgotamento futuro do subgênero (talvez ainda nem tanto em termos comerciais), qual poderia ser o papel de um diretor com um estilo tão marcado como Sam Raimi em DOUTOR ESTRANHO NO MULTIVERSO DA LOUCURA? Seria possível voltar ao debate sobre a autoralidade do cineasta em um esquema de produção industrial?
A questão pode ser colocada na continuação do filme de Stephen Strange. Após o blip e vitória sobre Thanos para salvar o universo, ele é surpreendido pela chegada de America Chavez, uma jovem capaz de abrir portais multidimensionais e transitar por diferentes universos. Ela está fugindo de um demônio controlado pela Feiticeira Escarlate, que está decidida em capturar os poderosas de viagem pelo multiverso. Para conseguir se salvar dessa ameaça e também proteger os universos, America precisará da ajuda de Doutor Estranho e do Mago Supremo Wong.
Não é a primeira vez que Sam Raimi trabalha nas histórias adaptadas de quadrinhos e no mundo dos super-heróis. Antes da popularização da Marvel, ele já havia feito a primeira trilogia do Homem-Aranha com uma abordagem fantasiosa e cartunesca digna das HQ’s. Em seu novo projeto, é possível perceber um cuidado relativamente maior com os arcos e os conflitos dramáticos dos personagens, assim como se pode notar nos filmes do aracnídeo. Até porque o diretor, junto com o roteirista Michael Waldron, encontra momentos para trabalhar calmamente as dimensões dramáticas e psicológicas de Stephen e de Wanda, mostrando como ambos se confrontam em uma dinâmica espelhada. Os dois são atormentados pela falta de figuras que tanto amam: para ele, Christine Palmer, com quem teve um relacionamento; para ela, os filhos Billy e Tommy, forjados em uma realidade ilusória na série “WandaVision“. A diferença entre eles é a forma como lidam com suas perdas e dramas pessoais.
Stephen Strange tenta seguir em frente após a separação com Christine, indo ao casamento dela com outro homem no início do filme. Porém, ele ainda se sente angustiado e imagina como seria continuar seu relacionamento se fizesse algo diferente, especialmente ao encontrar uma versão alternativa de Christine. Nesse sentido, Benedict Cumberbatch se mostra funcional ao compor um herói que expõe o aspecto dramático sutilmente, acompanha os momentos cômicos advindos da interação com Wong e sustenta as cenas de ação inventivas associadas à magia, à fantasia e aos mundos paralelos. Já Wanda Maximoff é guiada pelo desejo incontrolável de ter seus filhos por perto, ainda que coloque a vida de outras pessoas em risco, defender a perigosa tese do bem maior e ameaçar vários universos. Como sua personagem ocupa o centro dramático da trama, Elizabeth Olsen tem ótimas oportunidades de realçar o sentido humano deturpado que move a Feiticeira Escarlate em busca de seu objetivo independentemente dos meios necessários, inclusive com frases fortes que associam a maternidade a um poder mágico incomparável e questionam a injustiça de apenas ela se tornar uma inimiga quando quebra as regras.
Os contrapontos entre Stephen e Wanda revelam outros contrastes que formam a narrativa, sendo todos eles construídos em torno da ideia de espelhamento entre faces próximas, mas não exatamente iguais. Além dos arcabouços dramáticos dos personagens, Sam Raimi e Michael Waldron estabelecem uma série de reflexos como os de um espelho, sugerindo uma equivalência sem confirmá-la completamente. Assim, a realidade tangível se encontra com as magias de Doutor Estranho e Feiticeira Escarlate, colocando em dúvida o que é real e produto dos poderes de ambos. A mesma realidade concreta da Nova York tal qual a conhecemos colide com a existência de outros universos, aparentemente similares, porém distintos em na configuração visual e na presença de versões alternativas das mesmas pessoas. E a consciência plena dos acontecimentos contrasta com a dimensão onírica, muito evidente nos sonhos e/ou pesadelos a atormentarem vários personagens. É bem verdade que, muitas vezes, esse princípio artístico fica submetido à necessidade de explicar os conceitos constitutivos da mitologia ficcional, não se entregando simplesmente a uma loucura de multiverso.
Embora a criação do mundo ficcional precise atender a certos padrões dos estúdios Marvel (a explicação sistematizada de conceitos, como dominação onírica, e de elementos ficcionais como Livro de Vishanti e Darkhold, e as sequências de ação com lutas e confrontos físicos ou mágicos), Sam Raimi trabalha com criatividade os efeitos visuais. Os multiversos têm identidades próprias concebidas pela mente inventiva do cineasta, que representa a multiplicidade de universos nas sequências em que Stephen e America passam por um fluxo contínuo de mundos paralelos – o deslocamento pode ser rápido, mas suficiente para dar vazão à liberdade visual de seu criador através, por exemplo, de versões em animação e pintura surrealista dos dois personagens. Além disso, as tão necessárias cenas de luta podem ser filmadas de forma ousada, como o confronto entre duas versões de Doutor Estranho embalado sonoramente pela manipulação mágica de notas musicais saídas dos instrumentos presentes no cenário.
Há ainda outro espelhamento fundamental para a constituição do filme: a reinvenção da história de super-herói para poder ir além desse subgênero e de seus paralelos mais evidentes com a ação e a aventura. Nesse sentido, Sam Raimi imprime à narrativa uma estética de terror, que pode remeter ao início de sua carreira no cinema, notadamente os dois primeiros “Evil dead“, e o apreço pelo gênero novamente trabalhado em “Arraste-me para o inferno“. Então, o realizador tem um domínio considerável do horror e o escolhe como experiência sensorial para uma trama sobre multiverso, quebra da realidade e uso de poderes místicos. Este domínio se manifesta nas referências que a produção incorpora e dialoga, tal como os filmes de monstros na sequência de ação que introduz America, as histórias de zumbis na resolução do terceiro ato a partir de uma ação extrema tomada por Doutor Estranho para enfrentar a Feiticeira Escarlate e o projeto “Carrie, a Estranha” de Brian de Palma na forma como Wanda lembra a personagem durante o ataque a um laboratório de pesquisas. Por sinal, o grande objetivo da Feiticeira Escarlate remete à questão da maternidade monstruosa já abordada por produções de terror.
Caso a análise se aprofunde na abordagem do horror, é possível assimilar uma influência do gênero para além das citações mais evidentes de outras obras. Em algumas passagens da trama, o diretor articula convenções e construções próprias do terror, a começar pela apresentação um pouco mais direta dos efeitos físicos da violência nos ferimentos provocados (não chega a ser uma violência gráfica e explícita, mas se trata de uma diferença significativa em comparação com a esterilidade dos demais filmes da Marvel). Ao mesmo tempo, pode-se notar que aspectos diegéticos, como a dominação onírica e a força descomunal da Feiticeira Escarlate, são tratados respectivamente como possessão demoníaca e body horror. Já nos momentos específicos em que a personagem enfrenta um grupo de heróis poderosos em um salão e persegue os protagonistas pela tubulação de água, o cineasta mobiliza traços estéticos do terror, como a utilização expressiva das sombras, do extracampo, do silêncio prévio a um ataque ameaçador, de figuras assustadoras (como caveiras e mortos vivos) e até de jump scares.
Sonho/pesadelo e realidade. Mundo natural e multiverso. Realismo e magia. Convenções de tramas super-herói e reinvenções dentro do gênero terror. Estes espelhamentos podem ser reflexos inexatos de esferas distintas, mas dialógicas que moldam “Doutor Estranho no multiverso da loucura“. Por outro lado, poderia ser ingênuo fechar os olhos para as exigências já estabelecidas pela Marvel Studios em seus projetos, como o humor pueril, as referências à mitologia vinda das HQ’s e coadjuvantes nem tão desenvolvidos como poderiam (casos de America e Wong). Não ignorando tais aspectos, esta continuação parece menos submissa às obrigações de uma fórmula e revela alguns traços de autoralidade. Pode não ser um Sam Raimi totalmente independente fazendo o filme que poderia se tivesse o aval completo dos produtores, porém é um trabalho que lembra Taika Waititi em “Thor: Ragnarok” e Ryan Coogler em “Pantera Negra“. Estes são três títulos que não se resumem aos padrões industriais de um grande estúdio hollywoodiano.
Um resultado de todos os filmes que já viu.