“O CHALÉ DO LOBO” – O isolamento que exige aproximações
* Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).
Um dos fatores que pode orientar a crítica cinematográfica é a relação entre contexto histórico e obra de arte. Este ponto se sobressai nos filmes produzidos no Leste Europeu entre os anos 1950 e 1990, notadamente por conta da influência política e cultural do socialismo soviético no trabalho de muitos realizadores. É o caso, por exemplo, de Vera Chylitová, conhecida como primeira-dama do cinema tcheco e uma das pioneiras da Nouvelle Vague tchecoslovaca (movimento crítico ao socialismo estabelecido na Tchecoslováquia a partir de meados da década de 1940). Em sua carreira, a diretora foi perseguida pelo governo em função de “As pequenas margaridas” de 1966 e criticou a frustração quanto às expectativas de reformas no país após a Primavera de Praga em O CHALÉ DO LOBO de 1987. A alegoria política deste último se destaca em sua filmografia ao combinar com uma sensibilidade ímpar terror e ficção científica.
Isolamento, desconforto, solidão, incompreensão e estranhamento são algumas sensações que tomam conta da narrativa. Um grupo de jovens recebe o misterioso convite de fazer um curso de esqui nas montanhas, sendo acompanhados pelos instrutores Daddy, Dingo e Babeta. Quando todos estão reunidos na frente da casa onde ficarão, o trio de adultos dá uma notícia que surpreende os adolescentes: o número de alunos para o curso deveria ser dez e não onze, como a contagem revela. Então, começam a desconfiar de que pode haver um intruso ali. Enquanto os instrutores insistem que a quantidade deve reduzir em uma pessoa, os jovens se espantam com os estranhos comportamentos dos três adultos.
Mesmo antes de o conflito dramático em torno de um possível intruso e da eventual eliminação de um deles ser introduzido, a produção já cria um cenário opressivo que está diretamente relacionado com as condições geográficas desfavoráveis. Na região onde os personagens ficarão, o frio é intenso, o solo está coberto de neve e de gelo, uma avalanche isolou o terreno de áreas vizinhas, a comunicação não existe mais, os recursos estão limitados e o transporte se dá somente por teleférico. Como se não bastassem esses fatores climáticos, Vera Chytilová reforça a ideia de que a cabana onde estarão é ameaçadora em si mesma. Graças ao diretor de fotografia Jaromír Sofr e ao designer de produção Ludvík Siroky, o abrigo é coberto permanentemente por sombras que ocultam objetos cênicos e personagens e descrito como uma construção precária afetada pelo tempo. No exterior do local, a fotografia continua opressiva por conta da luz gélida e cinzenta que preenche todo o ambiente. Do lado de fora, a cineasta também sugere a existência de algum mal sobrenatural ao fazer a câmera mergulhar pela neve no solo como se fosse guiada pela movimentação de uma criatura não humana.
Quando a revelação sobre o número de jovens é feita, a questão do intruso é trabalhada de formas literais e simbólicas. Inicialmente, os adolescentes são colocados em um mistério e teorizam a respeito da possibilidade de haver um invasor na estação de esqui. Com o tempo, a narrativa cria alegorias políticas e referências históricas ao contexto da Tchecoslováquia após a Primavera de Praga e a retomada do rígido modelo soviético vindo da Rússia. Daddy insiste que ter uma pessoa a mais no lugar significaria correr o risco de não ter segurança e recursos suficientes, levando-o a inclusive lançar intrigas entre os jovens para que eles resolvam excluir algum deles e a convencer Gaba a ser uma “infiltrada” que repassasse informações valiosas para ele. Entretanto, os adolescentes assumem uma postura de defesa inflexível de todos, independentemente de alguém ser um intruso, sob o lema “um por todos e todos por um”. Este compromisso se manifesta, por exemplo, nas falas que criticam o autoritarismo de certas autoridades que se perdem na liderança e levam os outros a se perderem também, assim como na cena em que eles se exercitam até restar apenas Petr se movimentando como um símbolo do “um por todos e todos por um”.
A solidão e o isolamento compõem os dias que os adolescentes passam na estação de esqui, mesmo sendo um grupo que passa praticamente todo o tempo junto. Isso porque as características específicas de cada um e a dinâmica do confinamento em um lugar ermo e distante constroem a sensação de que estão afastados permanentemente ou em conflito eterno. Emilka parece ser excluída desde o princípio por chegar atrasada ao grupo, mas a segregação se intensifica a cada comentário pejorativo sobre ser cigana. Gaba é colocada em uma posição solitária por ter sido chamada por Daddy para espionar os colegas, afinal seria a mais forte entre todos. Honza se diferencia dos demais por parecer ser o único gentil e cordial no trato cotidiano. Petr é o único que desafia diretamente os instrutores e tem uma história de vida misteriosa por já ter sido preso. Alan afirma ser aquele que mais tem certeza de poder estar no curso por ter pagado sua inscrição, algo que dois colegas chama de suborno. Nem mesmo as irmãs gêmeas possuem uma comunhão sólida, já que se desentendem frequentemente e uma delas se sente solitária por ser surda e tentar esconder o fato dos outros.
Já a estranheza e a incompreensão são elementos marcantes na descrição e no desenvolvimento dos três instrutores. Não leva muito tempo para que Daddy, Dingo e Babeta tenham comportamentos incomuns durante os treinos de esqui, a divisão dos alimentos e a insistência na necessidade de serem dez jovens: as expressões faciais irrealistas, as aparições repentinas dentro da casa ou os movimentos corporais exagerados pela neve, quaisquer que sejam as atitudes em questão despertam preocupação e tensão entre os adolescentes e no público. E, quando a conversa na mesa de refeição revela a verdadeira natureza dos três instrutores e seus objetos reais por trás da convicção de que a quantidade de pessoas no local deve diminuir, o horror sci fi se torna mais perceptível, embora o fantástico esteja apenas no campo da sugestão. Pensando no cinema na década de 1980, títulos como “O iluminado” e “O enigma de outro mundo” são evocados em virtude das semelhanças quanto à locação principal e ao subgênero. Se nem o terror nem a ficção científica se tornam gráficos, a narrativa sugere o tom fantástico ao iluminar Dingo com cores gélidas e mergulhar o corpo de Daddy em sombras profundas.
Reposicionamento os conflitos narrativos a partir dos dois gêneros fantásticos, o roteiro de Vera Chytilová e de Daniela Fischerová trata as dificuldades que os adolescentes possuem para se unir frente às adversidades. De um lado, estes obstáculos podem se relacionar às limitações do local onde estão, como a pouca oferta de alimento, a necessidade de poupar recursos, as exigências de cumprir as regras e as cobranças por entregar quem desrespeitasse as normas. De outro, os problemas poderiam vir dos próprios impulsos juvenis que, em qualquer circunstância pueril, pode desencadear uma ameaça sob as palavras de “Vou matar você”. Sendo mais específico, o filme cria situações que disparam enfrentamentos entre eles, desde o desperdício de comidas, as dúvidas sobre como alimentar o cão de Emilka, as tentativas de fumar às escondidas até brincadeiras infantis durante a invasão do quarto feminino, que dificultam a integração de todos como um grupo coeso. A própria convivência em uma área isolada e de movimentação restrita amplifica os embates, tensões e a desarmonia entre os adolescentes.
É possível imaginar que a geografia do local e o turbilhão de emoções da adolescência possam gerar conflitos e afastamentos entre os personagens, mas não são as únicas variáveis da equação. Outro fator essencial para compreender a fragilização do laços dos adolescentes é a intervenção nociva de Daddy, Dingo e Babeta sobre o grupo. Se a alegoria política for recuperada, pode-se supor que o senso de coletividade instável dos jovens pode ser um microcosmo do projeto coletivista igualmente instável e contraditório do socialismo na Tchecoslováquia. Seguindo por essa linha, os adolescentes precisam se unir para sobreviver a partir de bases diferentes daquelas que os instrutores desejam, algo que fica evidente no confronto do clímax e no desafio final no teleférico da estação de esqui. Ao pensar que “O chalé do lobo” pode transbordar as telas por conta do engajamento político de Vera Chytilová, a realizadora pode utilizar seu filme para criticar o que se seguiu em seu país após a repressão da Primavera de Praga. Para ela, então, a Tchecoslováquia (jovens) poderia encontrar seu próprio caminho sem a interferência da Rússia (instrutores).
Um resultado de todos os filmes que já viu.