“7 PRISIONEIROS” – Simbolismos de uma escravidão moderna
“Casa-grande e senzala” pode ser uma obra problemática em muitos sentidos, mas se tornou uma referência para os estudos históricos e sociológicos do Brasil. O trabalho de Gilberto Freyre pode ser recuperado para se dialogar, extrair contribuições e criticar aspectos e teses frágeis, contextualizando suas lacunas e confrontando com perspectivas mais contemporâneas. Ignorar sua existência é algo difícil de fazer devido ao valor histórico que possui e às reapropriações críticas que podem ser feitas. Assim, por que não pensar o filme 7 PRISIONEIROS à luz das propostas e problemas de “Casa-grande e senzala“?
O filme disponível na Netflix acompanha o jovem Mateus ao deixar sua casa no interior de São Paulo para buscar uma oportunidade de trabalho na capital do estado. Ele aceita trabalhar em um ferro-velho com um homem chamado Luca para melhorar as condições de vida de sua família. Porém, acaba sendo explorado junto com outros três rapazes, sendo forçado a decidir entre continuar nessa situação ou arriscar o futuro de seus familiares. Com esta trama, a narrativa se divide entre duas dimensões sociais que podem remeter à casa grande (setor dominante) e à senzala (setor inferiorizado) do período colonial brasileiro.
Motivados pela esperança de conseguir um futuro melhor, Mateus, Samuel, Isaque e Ezequiel formam um grupo de trabalhadores jovens e simples levados por Gilson para o ferro-velho de Luca. No local, eles são submetidos pelo chefe a uma rotina degradante de trabalho para retirar e entregar metais usados para compradores interessados: já chegam com dívidas de transporte, hospedagem e alimentação, não possuem contrato nem carteira de trabalho assinada, têm os documentos retidos, mal recebem salário, não podem tomar banho e dormem em colchões puídos. São condições análogas à escravidão nos tempos atuais, sobretudo porque as personagens nem sequer podem sair dali. Enquanto Gilberto Freyre se equivoca ao tratar a escravidão como uma necessidade inevitável do empreendimento colonial português, Luca não tem como única opção o trabalho forçado – na realidade, o sujeito é a primeira ponta de uma classe dominante que, não satisfeita em enriquecer a partir das desigualdades sociais, demonstra crueldade ao humilhar quem não pertence a uma elite de privilegiados.
Se “Casa-grande e senzala” considera os africanos escravizados um bloco homogêneo sem singularidades, o diretor Alexandre Moratto busca dar complexidade e histórias próprias para os trabalhadores em situação de escravização. Embora Mateus seja o protagonista que se destaque como o filho e irmão afetuoso que se preocupa com a família e é o primeiro a desafiar Luca, seus colegas também recebem facetas específicas: Samuel é amigo de Mateus e apaixonado pela namorada sobre quem sempre fala, Isaque é o mais agressivo ao planejar matar o patrão para fugir e Ezequiel se mostra o mais vulnerável de todos por ser inseguro e analfabeto. Além disso, é interessante acompanhar os momentos de sociabilidade entre os quatro homens, como quando conversam no carro em direção a São Paulo e comem em um bar próximo ao ferro-velho.
Isaque e Mateus representam duas formas de resistência aos trabalhos forçados e à escravidão do passado. Enquanto o primeiro acredita no enfrentamento direto ao opressor, o segundo prefere usar as brechas e as possibilidades de acordos entre as partes. Nessa questão, Gilberto Freyre foi um dos estudiosos que abordou a existência de negociações entre escravizados e proprietários de terra, ainda que, por vezes, pareça diminuir a violência dessa relação. Na narrativa fílmica, a violência não é menosprezada, já que o grande conflito dramático está na cooptação de Mateus por Luca capaz de transformá-lo em um capataz que vigia, controla e pune os trabalhadores. Em termos expressivos, Alexandre Moratto cria dois mundos apartados, sendo o de Mateus associado a Luca apesar de marcado por fissuras (em dois momentos, a câmera acompanha o olhar do jovem que projeta como seria tentar fugir) e o dos outros trabalhadores próximo ao passado escravista (o lugar onde ficam presos parece uma senzala e, em dado instante, a trilha sonora traz uma canção que referencia seus ancestrais, ou seja, africanos escravizados).
Ao passo que o protagonista mergulha em uma profunda desconstrução de sua identidade de classe, a narrativa tenta explicar o que teria feito Mateus se afastar de seus colegas trabalhadores e assumir uma posição de comando em relação a eles. É justamente quando as causas para esse processo são buscadas que a produção se perde em meio à complexidade moral e dramática da trama. O primeiro problema mais significativo está na tentativa de humanização de Luca, algo que poderia ser, a princípio, enriquecedor para torná-lo uma personagem com mais nuances. Entretanto, ao invés de ser uma figura cinzenta surgida de estratégias desesperadas de sobrevivência a partir de uma origem humilde, acaba sendo idealizado como um bom sujeito digno de inspiração para Mateus – assim, a humanização se descontrola quando Luca aparece se divertindo ao assistir o jogo de futebol dos trabalhadores e leva Mateus para a festa da filha de um político e para um bar onde está sua família.
Por consequência, o segundo problema está nas tentativas de explicar quem seriam os comandantes de um modelo social desigual no qual Luca é apenas uma das engrenagens. A narrativa tenta demonstrar que existe um sistema maior que se desdobra em muitas direções e inclui sujeitos mais poderosos, porém tudo parece abstrato e sem uma dimensão palpável para os espectadores – o funcionário que trabalha para Luca, a atendente de um bar próximo, dois policiais e um político surgem em cena sem, de fato, afetar as relações entre as personagens e ter uma presença efetiva nos conflitos dramáticos. Mesmo quando a decupagem estabelece uma construção visual mais elaborada, este sistema não recebe uma faceta concreta que torne a sequência dos fios de alta tensão e espalhados pela cidade mais expressiva: Luca explica para Mateus que o cobre retirado por eles sustenta toda São Paulo, sendo símbolo de redes de poder e desigualdade que ultrapassam os limites do ferro-velho, além de mais uma forma de tornar a realidade socioeconômica diluída e sem nome vinculada abstratamente a uma grande metrópole.
Enfim, a conclusão dramatúrgica e estética do filme pode justificar a recordação de “Casa-grande e senzala“. As duas obras se aproximam ao descrever sistemas sociais mais amplos de maneiras problemáticas e ao subestimar o papel da ação individual em meio às estruturas mais abrangentes: Gilberto Freyre analisa o impacto da escravidão na sociedade colonial brasileira sem considerar a perspectiva da senzala e a capacidade de resistência dos africanos escravizados, já Alexandre Moratto insiste nas cenas contemplativas de Mateus como projeções de alguém capaz de aceitar e compreender como justas as atrocidades de Luca por algum senso de sacrifício familiar. Sob certos aspectos, “7 Prisioneiros” lembra “O tigre branco” por abordar a interiorização de um modelo opressor pelo oprimido, apesar de seu desfecho sofrer mais com a escolha de não dar nome aos bois e enfiar a mão na ferida do capitalismo de origem colonizada e racista. Assim, a resolução é a mais segura possível.
Um resultado de todos os filmes que já viu.