48ª MICSP: ENTREVISTA COM DAMIAN KOCUR, DIRETOR DE “SOB O VULCÃO”
Entrevistamos o diretor de “Sob o vulcão“, Damian Kocur, filme exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O longa é o selecionado pela Polônia para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
Na conversa, falamos sobre o filme, mas também sobre suas inspirações, sobre como é fazer cinema e diversos outros assuntos.
Em “Sob o vulcão“, uma família ucraniana passa o último dia de férias em Tenerife (Espanha). Eles ainda não sabem, todavia, que em poucas horas a vida de todos ali mudará completamente. Quando chegam ao aeroporto, descobrem que o voo foi cancelado porque a Rússia invadiu a Ucrânia. Da noite para o dia, a família de turistas fica presa nessa ilha na condição de refugiados.
Nosso Cinema: Você é polonês, mas fez um filme que se passa na Espanha envolvendo um conflito entre Ucrânia e Rússia. O que te motivou a escolher a Espanha como o cenário para a história ocorrer, foi o vulcão ou havia algo a mais?
Damian Kocur: Há muitas razões para essa escolha. A primeira razão foi que eu conhecia a ilha porque estava passando minhas férias lá. E eu diria que é um lugar que ainda é parte da Europa, um lugar que não é muito longe, como outro continente, porque custa mais.
A inspiração veio dos eventos reais. Eu conheci pessoas que estavam nessa situação, [ucranianos] que estavam passando as férias [em outro país] quando o conflito começou. Mas eles estavam em Madagascar, então era bem longe. Então eu pensei em talvez movê-los para outro lugar, que seria Tenerife, porque não é tão fácil sair dali. Quando a viagem é cancelada, você precisa de um tempo para pensar no que fazer.
E o vulcão também é uma parte dessa escolha, porque é simbólico que estamos sob o vulcão, sob a ameaça de coisas diferentes, como mudanças climáticas, guerra. Você nunca sabe o que vai acontecer, você nunca sabe quando o vulcão vai explodir. Nós todos esperávamos que isso nunca acontecesse durante a nossa vida, ninguém esperava que começasse. E começou.
Nosso Cinema: A respeito da história, Sofiia muitas vezes parece mais madura que Roma e Nastya. Isso é consequência das preocupações dos adultos ou da personalidade de Sofiia? Ou ambos?
Damian Kocur: Sim, ambos. Quando eu estou fazendo um filme, meus personagens são parte da história. Então eles escrevem a história comigo. Às vezes eu trabalho com não-profissionais, no caso, Sofia é não-profissional, mas o resto são atores profissionais. Roma e Nastya são atores profissionais.
No meu filme de estreia, porque esse é o meu segundo longa, eu estava trabalhando apenas com não-profissionais. Então eles colocaram a sua própria personalidade nessa história. Nesse caso, eu fiz o mesmo. Então Sofiia é muito madura, como ela é na vida real. Por isso eu envolvi o seu personagem nessa história. E Roma é como ele é na vida real. Ele é esse tipo de cara. Então eu também quero que ele seja como ele é nessa história.
Eu também reescrevi o texto quando eu conheci a Sofia. E eu realmente queria trabalhar com ela e com a Anastasiya Karpenko [a intérprete de Nastya]. Mas eu percebi que elas parecem muito diferentes. Eles não podem ser como mãe e filho biológicos, eles têm aparência muito diferente. Então é por isso que eu reescrevi a história, e fiz deles uma família de trabalhadores. Eu acho que foi melhor assim.
Nosso Cinema: Sim, acabou sendo melhor porque deu uma história pregressa para ambas, mais conflitos.
Antes de começar a sessão, você disse que o filme não teria ação, que seria mais sobre sentimentos. Para mim, há muita ação na medida em que há muita tensão naquela família. Existe uma tensão, porém, que você não criou, que é a tensão financeira, já que a família não precisaria pagar alimentação, nem hospedagem. Por que você não criou essa tensão?
Damian Kocur: Porque eu acho que é muito óbvia. Eu acho que eles não estão em uma situação financeira muito ruim, como nós pensamos que eles poderiam estar, porque eles são uma família de classe média. E eu não quero mostrar eles como estereotípicos. Porque na Europa, pelo menos, nós pensamos que os ucranianos são pobres. E nós olhamos para eles como se fossem os mais pobres da Europa. Mas eles têm a classe média. E eles não precisam se importar com muitas coisas. Eles precisam de certa forma, porque precisam trabalhar e tal. Mas eu não queria fazer um drama social nesse sentido. Então, quando eu queria focar mais nesse tipo de problema econômico, eu provavelmente perderia as outras coisas que eram mais importantes para mim.
Nosso Cinema: Mais existenciais.
Damian Kocur: Sim, sim. Mais existenciais. E eu sei que… Eu estou no Brasil e em São Paulo e vejo que o dinheiro regula o mundo. Você pode ver muito pobres e muito ricos. Mas isso não foi parte da minha história. Eu não queria colocar tudo que eu vejo em uma pequena história. Porque você não pode mostrar… Você não deveria mostrar e dizer muito em um filme. Você tem de focar nas coisas que são cruciais para você.
Então, por exemplo, eles estão tendo uma discussão: “por que nós compramos o ticket para o trem para a montanha?”, “porque você não queria gastar muito dinheiro”. Há trechos disso [dessa questão financeira]. Eles estão pensando sobre isso. Mas isso não é o principal assunto.
Nosso Cinema: Eu sinto que o filme é sobre um senso de pertencimento. É por isso que a família se perde na montanha, eles não conseguem participar das festas, e é por isso também que existe uma personagem específica, Mike. Ao mesmo tempo, Mike e Sofiia engatam uma espécie de romance ou amizade. O que os une é a falta do senso de pertencimento naquele lugar ou a falta de uma família (ou ao menos de uma família funcional)?
Damian Kocur: Eu acho que você encontrou algumas coisas que eu não pensei em fazer. Eu estava fazendo isso muito intuitivamente. Eu só percebi que nós não nos importamos. Como europeus, quando estamos viajando, nós não nos importamos com essas pessoas. Como os imigrantes da África. Nós os tratamos como pessoas que querem nos vender algo. Nós não nos importamos muito com isso. Eu só percebi que os ucranianos se tornaram refugiados por uma noite de turistas.
Eu não diria que eles [Sofiia e Mike] chegaram no mesmo nível no sentido do nível social. Porque eles [os ucranianos] ainda são mais ricos, mais privilegiados, mais europeus. Mas eu encontrei similaridades entre eles. Eles podem ser os únicos que realmente entendem o que eles estão vivendo. Porque eles perderam o seu lar como africanos. E pode haver diferentes razões para viver em um país. Não precisa ser apenas uma guerra. Pode ser também uma situação financeira, que pode ser resultado de uma guerra civil ou de um conflito que está acontecendo há muitos anos. Porque isso afeta a economia do país também. Então essa é a principal razão por que as pessoas vivem na África. E não apenas por causa de guerras. Porque no Senegal, digamos, é bem seguro para a maioria das pessoas. Não há guerra. Mas a condição financeira é tão ruim que você não pode viver lá, ter uma educação e ter uma vida melhor.
Então para mim foi importante mostrar essas similaridades entre eles. No começo, o homem [Roma] não quer comprar nada daquele cara [Mike]. E em algum momento, você não sabe se eles chegarão na mesma posição.
Nosso Cinema: Roma só quer se livrar de Mike naquele momento.
Damian Kocur: Sim, ele só quer se livrar dele.
Sabe, eu não gosto de um cinema que é previamente construído, com respostas dadas. Eu estou perguntando algumas perguntas, mostrando alguns momentos. E eu não gosto muito desse tipo de história clássica. O que é importante para mim é colocar você em alguns momentos e perguntar algumas perguntas para você mesmo. E se você tiver esse tipo de reflexão, você pode sempre pensar nisso ou concluir que não tem de pensar nisso. É a sua escolha. Depende muito do espectador, de como você percebe o filme. Então, eu gosto de dar ao público… Eu tento, pelo menos, tratar o público como um ser inteligente. Então, eu não quero mostrar tudo para eles, explicar tudo para eles. Eu vou continuar fazendo assim.
Há pessoas que têm esse tipo de problema com o filme [que o criticaram]. Eles dizem que só recebemos algo, mas não fomos mais profundos. Eu acho que é a sua escolha para ir para uma profundidade maior, porque é sobre a sua emoção, não sobre a emoção do personagem no filme. É sobre o que você está passando. É por isso que eu quero não chorar tanto quanto possível.
Nosso Cinema: Mas o seu filme foi selecionado para concorrer ao Oscar…
Damian Kocur: Eu sou o candidato do Oscar da Polônia, mas fui escolhido por pessoas completamente diferentes das que estavam no júri no festival de filmes de ficção mais importante da Polônia. Eu não consegui nada lá. Absolutamente nada. E este é o segundo lugar em que eu não consigo nada na Polônia, pelo menos neste festival mais importante. E eu não sei realmente por que, eu acho que as pessoas não entendem a língua que eu uso nos meus filmes. Para elas, talvez seja muito superficial.
É por isso que eu disse que não há muita ação, porque o que as pessoas diziam na Polônia era que o filme seria uma boa história por trinta minutos, mas não para uma hora e meia. E eu tenho uma opinião completamente diferente. E eu acho que há muitas coisas, como você mencionou no começo, acontecendo no meu filme, mas não como uma… Não como essa ação de fora que você pode realmente ver. É mais sobre o estado de sentimento, o estado de emoção. Mas eu não sei, talvez… Eu não sei, o Paweł Pawlikowski era o chefe deste comitê do Oscar polonês. Ele recebeu o Oscar há 10 anos atrás, e eu acho que ele tem uma perspectiva diferente. Ele gosta do meu filme, e os outros não tanto. Então é realmente estranho. Eu não sei, mas eu vivo na Polônia e vou fazer meu próximo filme lá. Então eu tenho que… Eu não vou dizer que eu tenho que me adaptar a essa atmosfera geral, mas eu gostaria de continuar desenvolvendo a minha própria língua, sabe? Eles me deixam fazer isso do meu jeito.
Nosso Cinema: Ainda sobre não ter ação, é claro que os membros daquela família não são os Vingadores, mas eu acho que eles são heróis, são heróis da vida real, que existem. E isso é importante mostrar.
Damian Kocur: Sim, sim, sim. Eu só queria mostrar como era. Eu quero dizer, da forma que provavelmente aconteceu com muitos, muitos ucranianos que estavam passando aquele tempo. Eles não poderiam agir da forma que você espera deles como heróis, como heróis de filmes, sabe? Que lutam ou algo assim. Eles estão meio que lutando com esse sentimento interno, sabe? Esse desamparo, esse sentimento de culpa também, sabe? Porque como você pode passar um bom tempo quando seus parentes e amigos estão em algum lugar tentando, sabe, sobreviver…
Nosso Cinema: Claro, entendo…
NC: Uma das principais personagens do filme, Fedir, é uma criança. Dirigir uma criança em um filme é diferente de dirigir um adulto. Como foi essa experiência? E qual a importância de Fedir na história?
Damian Kocur: O que as crianças te dão é… exatamente como animais: eles estão te dando um território completamente desconhecido. Um território completamente desconhecido. Você não pode realmente dirigi-los. Você só pode observá-los. Para manter os filhos [Fedir e Sofiia] reais como eles são, você não deve dirigi-los, porque eles perderão a sua naturalidade. Você deve dar-lhes muito espaço, observá-los. Às vezes, pedir a eles para fazer algo, mas ao mesmo tempo, eles não querem ir nessa direção, porque se eles são forçados a fazer algo, isso não vai funcionar.
Na maioria dos filmes, eu vejo que os filhos são usados como um tipo de objeto. Eles não são realmente reais.
Nosso Cinema: Muitas vezes não são autênticos…
Damian Kocur: Não são autênticos… Eu incorporo o Fedir como uma pessoa completamente desconhecida nesse filme, porque ele não sabe o que está acontecendo. Ele só sabe que ele não quer voltar [para a Ucrânia] por algum motivo. Ele quer que o avião caia nessa última cena, quando eles estão tocando a guitarra. Os caras estão tocando a guitarra e ele está cantando com eles. E ele me deu esses momentos reais, que são realmente importantes para mim. Para mim, em filmagem, quero que me dê essa sensação imensa de que eu estou observando a família real, as pessoas reais, e não apenas os atores, pretendendo que eles sejam como uma família.
Nosso Cinema: E a importância do Fedir?
Damian Kocur: São dois filhos, a Sofiia e o Fedir, mas eu não consideraria a Sofiia como uma criança. A Sofiia está completamente consciente do que está acontecendo, sabe? Ele não está só consciente, ele está vivendo a vida. Ele sabe, ele tem uma sensação do que está acontecendo, a tensão, ela está chorando à noite, na cama.
Os filhos não entendem o que está acontecendo na família. A família está quebrando, os filhos estão sentindo as emoções ruins, mas eles não conseguem explicar o que está acontecendo. Então eu escolhi ele como um personagem que vai coletar todas as suas emoções sem saber o que está acontecendo ao seu redor.
Nosso Cinema: Ele não entende muito bem, mas ele sente.
Damian Kocur: Ele se sente, sim.
Nosso Cinema: Porque ele fecha a porta naquela cena, se isolando, por exemplo.
Damian Kocur: Sim, sim, sim. E ele precisa da atenção, eu acho, e ele está perdendo a atenção, sabe? Porque eles estão tão focados no que está acontecendo entre eles, os adultos, que há um momento em que a Sofiia tem de cuidar dele, e não há ninguém que possa cuidar deles. Porque em algum momento, eu tenho a sensação de que os pais não gostam de cuidar dos filhos, sabe? Eles não gostam de passar o tempo devido com eles, tentando explicar o que está acontecendo porque eles estão assustados por si mesmos. Então os filhos estão deixados sozinhos.
Nosso Cinema: Roma sente que tem um dever com seu país. Pode-se dizer que ele é egoísta por abandonar a família e cumprir esse dever? Ou ele está cumprindo esse dever justamente pela sua família?
Damian Kocur: Você sabe, eu fui inspirado por uma história em que uma garota [ucraniana] me disse que ela estava passando as férias e estava com seu namorado, e ela estava esperando o tempo todo para ele dizer “estou voltando, estou voltando para a Ucrânia”. Então ela estava quase pedindo para ele dizer isso. Mas no momento em que ela disse isso, ela estava inconscientemente pressionando ele. E quando ele finalmente disse “sim, eu vou voltar, eu vou voltar para Kiev, eu vou lutar”, ela ficou louca, porque ficou como se isso não pudesse ser real. E enquanto não havia sido possível, ela estava tentando, sabe, influenciar ele de uma forma inconsciente.
Então eu pensei: “o Roma é a última pessoa que deveria ir e lutar”. Você pode ver que o cara não é um guerreiro, ele não vai lutar. Mas eu acho que ele sente essa obrigação dentro dele, porque ele não pode provar que ele é o chefe da família. Como você pode provar que mesmo que você esteja indo em uma viagem de montanhas e perca a conexão com a família você é o chefe da família? Então esse é o passo desesperado, sabe, e muito estúpido, na minha opinião, também.
Nosso Cinema: Você se graduou na Krzysztof Kieślowski Film School. Eu vejo que Kieślowski influenciou de alguma forma esse seu trabalho. Eu posso dar dois exemplos: ao inserir questões morais e de uma dimensão extrapessoal no domínio pessoal e familiar; e ao não ser didático demais nos sentimentos das personagens. Que outros cineastas influenciam seus trabalhos?
Damian Kocur: Você me surpreendeu, porque eu não diria que Kieslowski foi minha inspiração. Eu gosto dele como pessoa, como ele foi, porque ele era um cara muito bom, muito empático, muito próximo das pessoas. Talvez essa seja a coisa que, eu diria, em comum, eu desejo ser como ele, nesse sentido. Mas, eu realmente não gosto do que ele fez nos últimos anos da sua carreira. A Trilogia das Cores (“A liberdade é azul”, “A igualdade é branca” e “A fraternidade é vermelha”) e “A dupla vida de Veronique” não são meu tipo de cinema. Mas o que ele fez antes, como o “Decálogo”, e os exemplos que você deu, isso é verdade, é importante para mim.
Os outros diretores? Não sei, talvez eu seja mais influenciado pela nova onda da Tchecoslovaquia do que pelo cinema polonês. Eu não sou o maior fã do Andrzej Wajda. Eu realmente gosto do Abbas Kiarostami, esse jeito com que ele trabalha com pessoas que não são profissionais, que observam muito, encontrando suas histórias, histórias das pessoas que ele ouviu…
Eu amo o cinema, estou tentando assistir tantos filmes quanto possível. E eu amo o cinema, então eu não sou um dos cineastas que se concentra somente no que está fazendo. Eu acho que estou sendo muito inspirado pelas coisas que eu vejo, e tentando, talvez inconscientemente, usar algumas… não sei, algumas técnicas, o que eu vi, o que me impressionou. E eu acho que o cinema está se desenvolvendo por causa disso. Se você ainda está atento ao que está acontecendo no cinema, você pode estar atento ao espectador, eu acho. Você pode estar se comunicando com o espectador. E a pior coisa que você pode fazer é parar de assistir a filmes e pretender que você é o único que tem algo a dizer.
Nosso Cinema: E a que filmes você assiste?
Damian Kocur: Eu gosto de descobrir filmes antigos. Por exemplo, antes de ontem eu assisti a um filme iraniano completamente esquecido, feito por um diretor que foi a inspiração para o “Close-up”, do Abbas Kiarostami… E eu estou tentando ficar atento, como eu disse. Então, por exemplo, ontem eu assisti a “O brutalista”, que eu realmente amei. A forma como ele [o diretor Brady Corbet] fez esse filme e os problemas que ele teve produzindo ele, é realmente… Eu também gosto de ter muita inspiração, porque você tem que encontrar essa motivação de fazer filmes, não só no processo, mas também no processo de filmagem, mas também no processo de procurar fundos. E é uma luta muito difícil, às vezes.
Nosso Cinema: Você assiste também a filmes brasileiros?
Damian Kocur: Eu tenho que… Eu vou ser honesto com você: eu estou muito chateado, porque eu não conheço muito o cinema brasileiro. É a minha primeira vez na América do Sul. Eu estou super impressionado com o que eu vejo. Isso me inspira muito, esse lugar. Eu assisti apenas a um filme, talvez o “Cidade de Deus”, mas esse é um filme muito óbvio para… E eu assisti… Há alguns meses atrás, eu assisti um filme brasileiro muito antigo com crianças. E o título era o nome de um dos garotos. Não me lembro agora o nome.
Mas eu tenho que dizer que eu conheço pouco o cinema sul-americano, mas o continente é enorme, o Brasil é enorme em si mesmo. E eu realmente pedi a algumas pessoas para me dar algumas dicas, para fazer uma lista de filmes para assistir, porque eu estou realmente interessado.
Nosso Cinema: É bom começar pelo cinema novo brasileiro, é realmente muito bom… com Glauber Rocha, por exemplo.
Damian Kocur: Eu tenho muitas coisas para descobrir.
Nosso Cinema: Eu recomendo.
Nosso Cinema: Você, como cineasta, sente que está cumprindo um dever (moral, político) fazendo esse filme? O que há de pessoal no seu filme?
Damian Kocur: O que há de pessoal é que eu nunca faria um filme sem ter as mesmas sensações, pelo menos por algum momento, que os meus personagens têm. Sempre tem que vir de dentro de mim. Então eu tinha essa sensação de desamparo, eu tinha essa sensação de culpa, de que eu não posso fazer muito, eu só posso observar, eu só posso escrever no meu celular e assistir. Porque, para os políticos, foi um momento muito forte, já que, em uma noite, milhões de pessoas, imigrantes, crianças e mulheres, estavam passando pela fronteira, e estavam em cidades polonesas. Então foi um momento muito forte para mim, porque veio das minhas sensações pessoais. E eu tinha esse problema, essas dúvidas, se eu, como homem polonês, tenho o direito moral de fazer um filme sobre a guerra deles. Então eu perguntei se era ok para eles, o que eles pensavam. E eles disseram: “nós estamos muito felizes que você está fazendo isso, porque é muito importante contar a história sobre o nosso país e sobre nós”. Isso me deu essa permissão, essa permissão moral para fazer isso. E eu acho que… Se eu… O que foi o início da sua pergunta?
Nosso Cinema: Se você sente que está cumprindo um dever, talvez moral ou político.
Damian Kocur: Sim, de certa forma. É por isso que eu fiz esse filme, eu acho.
Nosso Cinema: Você tem algo a dizer?
Damian Kocur: Sim, eu acho que eu só quero eu só quero… você sabe, eu acho que a coisa mais difícil que todos nós temos que passar em nossa vida é a sensação de solidão. Nesse momento, nesse filme, você pode ver muitos desses momentos, porque eles, juntos, eles são quatro, mas eles estão completamente sozinhos. Ninguém realmente se importa. Isso é o que está acontecendo no mundo agora. Não é apenas sobre a guerra na Ucrânia. Eu acho que o meu filme é também sobre solidão, sabe… Nesse momento em particular. E eu realmente acho que a sensação de solidariedade é muito importante. Especialmente agora, para ajudar alguém, entende? Nós não podemos apenas ficar e ver o que está acontecendo. Nós devemos agir. E é difícil agir por nós como pessoas normais. Eu quero dizer, olha o que está acontecendo agora na Palestina. É louco! Eu não posso realmente acreditar que ninguém está realmente fazendo nada com isso. No Líbano é o mesmo. E o que eu posso fazer? Eu, como pessoa normal, como homem, como pessoa média, como pessoa média europeia, eu não posso fazer muito, você sabe. Se os políticos não podem fazer nada, o que eu posso fazer? Mas eu, como cineasta, pelo menos eu tenho a oportunidade de contar uma história sobre o que está acontecendo. E esse é o único alvo que eu tenho. Porque eu não tenho coragem suficiente para ir lá, e esse não é meu estilo. Então eu fiz o que eu pude.
Nosso Cinema: E o que você pode contar sobre o seu próximo projeto?
Damian Kocur: É engraçado que você está me perguntando sobre isso, porque amanhã de manhã eu tenho um pitch, para o meu próximo projeto, frente ao Comitê do Instituto de Filmes Polonês. Eles vão decidir se eu vou fazer o filme ou não. E há dois anos, quando tínhamos o governo de extrema-direita, eles censuraram o meu filme, então eu não recebi dinheiro para fazer esse filme, eu tive que esperar. Agora nós temos um novo governo, então talvez eles financiem isso. Porque o filme é também sobre essa crise de imigração na fronteira polonesa. Agnieszka Holland fez um filme sobre isso, mas o meu filme vai ser algo diferente. Eu vou perguntar também questões morais. Eu não sei se no Brasil você tem esse tipo de problemas de imigração. Provavelmente não, vocês têm problemas diferentes.
Nosso Cinema: Temos, mas não é como na Europa.
Damian Kocur: Na Europa começou em 2010, com a Primavera Árabe. Mas está crescendo, crescendo, crescendo. Isso traz mudanças políticas também, porque as pessoas estão votando em favor da direita. Então isso vai afetar a cena política na Europa. Está ficando louco. Mas eu não quero fazer outro filme social sobre a crise de imigração. O meu filme é sobre um encontro entre um homem polonês e um imigrante que passou pela fronteira ilegalmente. E você vai ver o que vai aparecer depois desse encontro. É um projeto muito difícil, porque eu decidi ir meu jeito, trabalhar com profissionais. Então eu estou viajando muito agora, tentando encontrar atores para o meu filme, o que não é muito fácil. Eu acho que no Brasil seria muito mais fácil trabalhar com profissionais, porque você tem um jeito completamente diferente de ser, é muito mais aberto. E na Polônia as pessoas não estão muito interessadas nisso, então é muito mais difícil.
Nosso Cinema: Parece que você tem preferência por trabalhar com não profissionais…
Damian Kocur: Sim, eu acho que sim. Eu acho que não há atores ruins, só há talvez elencos ruins. Eu não tenho nada contra trabalhar com atores profissionais, mas eu não conheço muitos deles. Eu prefiro trabalhar com pessoas que eu conheço e que eu gosto, pessoas que têm essa personalidade, e eu incorporo elas como pessoas reais no meu filme. Eu não deixo que elas sejam como não são, eu tento obter o máximo de elas que há no filme. E os atores sempre tentam ser alguém diferente, eles sempre tentam atuar. Eu não preciso de alguém para atuar em meus filmes, eu só quero que eles sejam eles mesmos, e digam as coisas que eu peço para eles dizerem, e às vezes se comportem da forma que eu peço para eles se comportarem, mas nada mais.
Nosso Cinema: Nós falamos sobre o Krzysztof Kieślowski, ele é um cineasta que com certeza deixou um legado para o cinema. O que você gostaria de deixar como legado para o cinema?
Damian Kocur: Eu não sei se eu posso dar ao cinema qualquer coisa. Eu também não faço coisas muito experimentais… O que eu ouvi aqui, por exemplo, dos produtores colombianos, eles me disseram que na Colômbia eles têm um problema diferente, porque muitos dos diretores trabalham com profissionais, e eles gostariam de construir um sistema de estrelas. Na Polônia é diferente. São todos os mesmos personagens, todos os mesmos filmes, e você tem a sensação de ver o mesmo filme, feito por diferentes pessoas. Então eu estou tentando fazer algo completamente diferente, estou tentando buscar o meu próprio caminho, e tentar encorajar os cineastas jovens que também possam fazer diferentes filmes, desenvolver o seu próprio método, a sua própria linguagem, porque essa é a única coisa que pode fazer os filmes visíveis. Porque filmar não é sobre contar uma história para mim, é mais sobre como você conta essa história. A história de “O brutalista”, por exemplo, poderia ser dita de um “modo” muito Hollywood. E o diretor fez isso completamente diferente, em um modo muito minimalista. Embora seja sobre arquitetura, algo grande, mas ele foi muito preciso e rigoroso, eu diria, com as coisas que ele mostrou no filme. E o que tomou um grande papel foram a imagem, o som e a música, que fizeram muito com o filme. É por isso que eu gostei muito daquele filme, porque para mim o cinema é mais como música, não como literatura, então eu não foco muito no texto também. Quando eu encontro algo muito interessante, mais orgânico, e durante o processo de filmagem, eu sempre vou escolher essa parte.
Nosso Cinema: O texto serve mais como pretexto…
Damian Kocur: Mais como pretexto. Mas não há muitas pessoas na Europa, especialmente na Polônia, que pensam desse jeito. Eles estão tentando fotografar o texto o mais precisamente possível. E às vezes eu sinto que não faz sentido ir com o texto, porque o cinema é sobre algumas coisas diferentes, especialmente quando você trabalha com profissionais. Se você está sempre aberto para as coisas que podem acontecer, você sempre pode ficar surpreso. E isso é uma coisa que eu amo no cinema. Eu não quero ficar entediado por mim mesmo ao fazer um filme. Por exemplo, há uma cena em “Sob o vulcão” em que o Feder está chorando, eu fiquei super feliz que isso aconteceu porque eu pude capturar aquele momento real. Então eu sempre vou olhar para esse tipo de momentos reais, como o Kiarostami fazia.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.